Anna Dietzsch | Capital social e gentrificação

20/01/2016
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Há 15 anos mudei para os EUA para fazer meu mestrado em desenho urbano e, desde então, tenho dividido minha experiência profissional e pessoal entre Nova York e São Paulo. Nesse período, na ponte aérea entre esses dois importantes centros urbanos, fui testemunha das transformações paralelas de ambos. Nova York, numa curva econômica ascendente desde os anos 80, voltou-se para a construção de equipamentos urbanos públicos e a valorização da cidade, com o aumento dos preços imobiliários e do turismo, enquanto São Paulo acelerava sua capacidade de construção privada, acompanhada pelo pouco desenvolvimento de sua infraestrutura.

A trajetória recente de Nova York, que há quatro décadas se esforçava para sair de uma grave crise financeira, e é hoje um expoente do modelo da cidade compacta e pedestre, me parece especialmente interessante na discussão da cidade contemporânea e seus caminhos rumo à cidade do próximo milênio. Entre a flexibilização da atuação público-privada, o declínio da manufatura e a crescente concentração de renda, os caminhos de Nova York, como o de tantas outras cidades ao redor do mundo, apontam os perigos da gentrificação e do modelo que idealiza a melhoria urbanística como resultado de intervenções físicas, ou seja, a melhoria da cidade através da construção de equipamentos, em detrimento de um entendimento mais profundo do seu capital humano e ambiental.

Na década de 70 Nova York se rendeu à suburbanização, com o êxodo da população branca e afluente para longe do centro, para longe do mito da violência negra e de sua pobreza. Enquanto no South Bronx proprietários queimavam suas propriedades desvalorizadas, quase todas transformadas em cortiços, para poder receber o dinheiro do seguro, gangues tomavam conta dos espaços públicos no Brooklyn e em Manhattan pipocavam pontos de prostituição e droga.

Em 1975 Nova York passa por uma terrível crise fiscal, quase declarando falência. Abandonada pelo mercado financeiro, em cinco anos sua dívida de curto prazo cresceu de zero para US$6 bilhões. Gerald Ford, o presidente americano então, nega apoio à cidade e é cunhado pela imprensa com a famosa expressão drop dead, manifestando sua relutância em ajudar uma cidade que em sua opinião “desperdiçava dinheiro”.

É nesse momento que a cidade começa a se re-transformar na Nova York que conhecemos hoje. Através de um esforço coletivo admirável, ela conseguiu se reerguer da crise econômica para voltar a ser uma cidade afluente, pedestre e de importância global. Enquanto a indústria financeira nova-iorquina formulou medidas inovadoras de financiamento e avaliação, no plano político o governador Hugh Carey orquestrou a recuperação econômica e o refinanciamento da dívida, recusando-se a decretar a falência da cidade, que numa bola de neve levaria o estado, e provavelmente a nação, a sofrer também.

Com grande iniciativa e presença, o governador democrata foi o pivô da recuperação, às custas de medidas muito impopulares e penosas, mas que se cercaram do apoio das mais diferentes frentes da sociedade, desde a representação republicana no Senado, até as organizações sindicais, que contornaram greves e manifestações para se sentar à mesa de negociações com o governo.

No ano de 1975 milhares de pessoas se reuniram em Times Square para manifestar seu desgosto à decisão do presidente e para apoiar transformações internas. Os sindicatos negociaram o congelamento de salários e 20% de redução da mão de obra, impostos e tarifas aumentaram, enquanto bancos privados se comprometeram a facilitar o crédito e a estender prazos de dívidas. O que se viu foi um verdadeiro contrato social, levando a economia de NY a florescer na década seguinte. Em 1980, apenas cinco anos depois da declaração de Ford, as contas municipais já estavam equilibradas.

Esse contrato, selado entre os setores público e privado, não foi fácil e teve que contornar adversidades e a complexidade da situação. Tampouco se criou repentinamente, mas de um entendimento construído de que o bem público perpassa o indivíduo. Se olharmos na microescala para os acontecimentos da década de 70 em Nova York, veremos que, em meio ao caos, eventos localizados já apontavam para a força dessa visão.

No South Bronx mesmo, enquanto tudo queimava ao redor, um grupo de moradores resolveu agir. Eles se uniram numa associação e criaram condições financeiras para o recebimento de empréstimos federais para habitação. Construíram, quase em regime de mutirão, três prédios para moradia, criando o Banana Kelly, associação privada que hoje já construiu mais de 2.000 unidades habitacionais e provê assistência para outras 2.000 no bairro.

A Fundação Ford, associada a 25 grandes empresas americanas, entendeu a importância de ações como essa e formou a Local Innitiative Support Corporation, dando mais de US$60 milhões para líderes comunitários urbanos investirem em suas comunidades. Empresários se reuniram para injetar dinheiro nas escolas públicas e os Rockfeller criaram fundos locais de private equity, levantando dinheiro para bairros fragilizados, como o Harlem.

É nesse processo que se explicita a importância da aliança entre o público e o privado, bem como a criação de mecanismos de parcerias entre um e outro. Essa visão foi muito explorada pelo ex-prefeito da cidade, Michael Bloomberg, que mais recentemente transformou o perfil de NY de maneira decisiva. São emblemáticos os exemplos de transformação urbana que a flexibilização da atuação público-privada, durante seu governo, permitiu, como a construção do parque HighLine, que começou como uma reivindicação comunitária e foi depois viabilizada por um refinado plano de rezoneamento, negociado entre prefeitura e proprietários ao redor.

Outros exemplos incluem a abertura e o redesenho da orla marítima, onde alguns parques estão sendo financiados com a venda de lotes para o mercado imobiliário, a reforma dos parques públicos financiada por campanhas e conselhos com representação privada, e o fortalecimento dos BIDs (Business Development Districts), que permitem a reforma de bairros inteiros através de parcerias público-privadas.

No entanto, se essa visão permitiu ao governo de Bloomberg o uso de capital privado na elaboração de projetos públicos, ela também privilegiou o capital privado em detrimento do público. Os novos equipamentos e projetos instalados na cidade, aliados a uma visão de governo muito alavancada pelo fortalecimento do mercado imobiliário, não só fizeram de NY um lugar mais prazeroso, ambientalmente mais responsável e com maior qualidades dos espaços públicos, mas também a fizeram inacessível àqueles que não podiam mais pagar pelos altos aluguéis que acompanharam essa transformação.  

No filme Heart of a Dog, a artista multimídia Laurie Anderson, caminhando com sua cadela Lolabelle pelas ruas de Manhattan, aponta entre outras coisas para “...guardas armados, câmeras de vililância e o onipresente aviso 'se você notar algo, diga algo', perpetuando a filosofia de Wittgenstein" ( in Laurie Anderson´s Habeas Corpus, at the Park Avenue Armory, de Alex Ross). Julian Casablancas, o cantor cult da banda The Strokes, fala de algo parecido: "A gentrificação não é ruim em si, o problema são as consequências, as pessoas que vão ficando fora do alcance da sua visão, isso é que incomoda. Ainda há alguns bolsões legais em Nova York, mas são poucos, um lugar secreto aqui e ali, todo o resto foi varrido. Eu morava perto do Mars Bar e agora é uma visão tão triste a que vejo quando passo por lá. Quando fizemos o álbum Is this It, gravamos em cima da livraria The Strand, onde antes havia aquele monte de estúdios e pequenos escritórios bacanas. Mas aumentaram tanto os aluguéis, que acabaram sendo oferecidos para alguma companhia grande de internet, que é quem podia pagar, e todas aquelas coisa legais foram embora. Tem que haver liberdade, mas temos também que respeitar a liberdade dos outros" (Casablancas, em entrevista para o blog The Daily Beast). 

O preço do aluguel hoje em Nova York não permite mais a permanência de profissionais como professores ou vendedores, morando na cidade, para não mencionar os artistas e/ou associações sem fins lucrativos. Os investimentos internacionais bilionários em Manhattan irradiam a alta de preços com a migração da população de classe média e alta para o Brooklyn, Queens e Harlem.

A riqueza que a cidade sempre extraiu do equilíbrio entre a indústria criativa e a financeira, ao longo de sua história, perde força com o êxodo de artistas, músicos, profissionais liberais e jovens profissionais para outros municípios, estados e cidades como Chicago e Detroit. Como manter o interesse da população jovem e inovadora, se a ilha, e aos poucos os outros quatro “boroughs”, vão se transformando em áreas higienizadas, como um grande parque de diversões, uma Disneylandia urbana com ingresso de entrada caro?

A correlação entre a melhoria dos equipamentos urbanos e a mais-valia imobiliária nutre a percepção de que o processo de gentrificação não é “natural” ao desenvolvimento da cidade, mas um esforço sistêmico de valorização imobiliária que acaba privilegiando alguns e deixa de lado muitos outros. A ONG Right to the City, com sede no Brooklyn, vai mais longe; para seus membros (e para muitas associações de bairro que os procuram, vindas de todo o país), a gentrificação é a violação a um direito básico, aquele de “poder morar sem interferências”, listado na Declaração dos Direitos Humanos da ONU e já defendido por Henri Lefebvre no seu livro Le Droit à la Ville.

Estudos divulgados por uma outra associação, a Causa Justa, mostram que em geral as famílias realocadas perdem financeira e socialmente, com piores índices escolares, perda de emprego e acréscimo nos custos com transporte. Por outro lado, os estudos de Patrick Sharkey (Stuck in Place: Urban Neighborhoods and the End of Progress Towards Racial Equality, The University of Chicago Press) mostram que os jovens negros que permanecem nos bairros gentrificados americanos têm uma considerável melhora no desempenho acadêmico e nos índices de sucesso profissional.

A melhora da cidade física, com mais opções de lazer público, mais segurança e mobilidade, são os sinais e a base para uma maior estabilidade social e econômica -- e, nesse sentido, reafirmam a importância da construção de novos equipamentos e infraestrutura, assim como das diretrizes de ordenamento urbano que as leis de zoneamento propõem. No entanto, me parece que seguiremos correndo atrás do próprio rabo se não conseguirmos equilibrar a importância dos ganhos monetários com aquilo que também mantém a cidade dinâmica e criativa, que é a diversidade.

E não falo da diversidade cultural somente, mas da econômico-social também. Se as cidades são, como disse Edward Glaeser em seu livro Triumph of the City,  “nossos mais preciosos ativos”, é justamente nelas que poderemos achar soluções para um melhor equilíbrio, o espaço comum de inserção. Ainda citando Glaeser, é preciso não esquecer que as cidades são feitas de carne e osso, e não de concreto e que “... devemos lembrar que políticas públicas deveriam ajudar pessoas pobres e não lugares pobres".

Para isso, é preciso buscar estratégias de fortalecimento comunitário e medidas incentivadoras que ajudem a mediar o avanço do mercado imobiliário, como motor de gentrificação, e o usufruto da melhora urbana que ela possa trazer para um número cada vez maior e mais diverso de pessoas, aliando a força do poder privado e da lógica do capital à força das redes sociais e locais. Exemplos como os programas de “rent control” e “inclusionary housing” apontam para algumas iniciativas americanas de lidar com o problema -- e é interessante notar que, embora sejam políticas públicas federais ou regionais, seu grau de sucesso está intimamente ligado às características locais e na micro escala do bairro. Isso quer dizer que, além de melhora imobiliária e física, temos que nos preocupar com a melhora humana.

Como fomentar capital humano e capital social, enquanto o capital imobiliário avança, é para mim, hoje, o maior desafio das cidades e daqueles que estão pensando sobre elas. Para começar, além de equipamentos e obras, é preciso olhar para o detalhe do território onde se atua, entendendo que qualquer lugar tem, a priori, um potencial humano latente, ou explícito, e é preciso fortalecê-lo. Políticas urbanas florescerão quando integrarem ao plano da construção aquele da educação, da saúde, da economia local e da cultura.