Como surgiram as favelas no Brasil

CASA VOGUE | 30 DE OUTUBRO, 2018
31/10/2018
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No último artigo, falamos sobre as várias leis e incentivos urbanísticos que regem a chamada Cidade Formal, aquela que obedece às regras de construção, solicita e obtém licenças junto aos órgãos públicos. Como mostramos, as leis que orientam a edificação e os usos dos imóveis urbanos são muitas, e nem sempre são cumpridas. Neste artigo, trataremos sobre o outro lado das cidades brasileiras e suas leis: a Cidade Informal, aquela que é construída à margem da legalidade. 

 

Industrialização, explosão demográfica e urbanização

 

Durante o século XX, a sociedade brasileira passou por três acelerados processos de transformação que produziram as cidades atuais: a industrialização da economia; a explosão demográfica decorrente da queda das taxas de mortalidade; e a urbanização da população, que migrou em massa do campo para as cidades em busca de melhores oportunidades de vida. Esses movimentos ocorreram com grande força entre as décadas de 1940 e 1980, quando o Brasil era pobre (em PIB per capita), pouco escolarizado e muito desigual. Neste período, a população do país aumentou de 40 para 120 milhões e a parcela da população vivendo em cidades foi de 31% para 67%. O resultado foi um enorme contingente de brasileiros pobres e destituídos de direitos sociais (introduzidos apenas com a Constituição de 1988) vivendo de forma precária nas cidades.

 

                          

                                                                     Fonte: IBGE, censos oficiais. Elaboração própria.

A ocupação informal das periferias

 

Esse foi o contexto socioeconômico que produziu as cidades atuais. Pessoas que não tinham renda suficiente para pagar o aluguel de imóveis do mercado formal – registrados e licenciados – trataram de produzir para si mesmas a habitação de que necessitavam. Construíram suas casas em loteamentos irregulares, comprando de grileiros lotes sem registro, ou ocuparam terrenos inadequados como planícies alagáveis e encostas íngremes. Isso ocorria principalmente nas periferias da cidade formal, em regiões desprovidas de infraestrutura e de serviços necessários para caracterizar uma cidade: ruas e calçadas, energia elétrica, abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, varrição, policiamento, transporte público, equipamentos de educação, saúde e lazer.

 

 

Urbanização das favelas

 

Até a década de 1980, os habitantes desses bairros eram vistos como problemas, não como cidadãos. A única política pública destinada a esses bairros era a “erradicação de favelas”, consistindo na demolição das casas e expulsão dos moradores. Com os movimentos pela redemocratização do país, veio a conscientização de que os brasileiros mais pobres, mesmo os moradores de ocupações irregulares, também têm o direito de serem atendidos pelo Estado. Tiveram início as políticas de urbanização de favelas, levando os serviços e as infraestruturas que faltavam a esses bairros. Ao mesmo tempo, as famílias mudavam: os casais passaram a ter menos filhos, e estes frequentavam a escola por mais anos do que seus pais. A estabilização econômica da década de 1990 e o crescimento dos anos 2000 permitiram que os moradores desses bairros melhorassem a estrutura de suas casas e as expandissem para acomodar melhor a todos. Começou um lentíssimo ciclo de melhoria das condições de vida na cidade informal.

 

A população das favelas hoje

 

Nos últimos 30 anos, a política de urbanização de favelas, que as transformou em bairros urbanizados, avançou nas grandes cidades das regiões Sudeste e Nordeste, enquanto as da região Norte viram pouca mudança. Segundo o estudo “Aglomerados subnormais” do IBGE, em 2010, as favelas abrigavam 11% dos habitantes da região metropolitana (RM) de São Paulo, 14% dos habitantes da RM do Rio de Janeiro, 23% de Recife, 27% de Salvador e mais de 54% dos habitantes da RM de Belém.

 

 

                          

                          Fonte: Estudo “Aglomerados Subnormais”, IBGE, 2010. Elaboração própria.

 

Diferenças regionais

 

É importante conhecer as diferenças regionais das cidades informais brasileiras para planejar as políticas que serão destinadas a cada uma. O estudo de 2013 da Fundação João Pinheiro “Déficit Habitacional no Brasil 2010” mostra que, enquanto a precariedade dos domicílios é um importante componente do déficit nos estados da região Norte (mais Piauí e Maranhão), no restante do país o componente que se destaca é o ônus excessivo com o aluguel, ou seja, a destinação de mais de 30% da renda familiar mensal ao pagamento do aluguel. Por outro lado, o principal componente do déficit habitacional brasileiro é relativamente uniforme em todo o país, respondendo por 43% do total: a coabitação familiar, situação em que os filhos já constituíram sua própria família e continuam vivendo na casa dos pais por falta de alternativa.

 

                          

                          Fonte: Estudo “Déficit Habitacional Municipal no Brasil 2010”, Fundação João Pinheiro e Ministério

                          das Cidades, com base no censo demográfico do IBGE de 2010. Elaboração própria.

 

Alto custo da moradia no Sudeste

 

A região Sudeste, que concentra cerca de 40% da população, responde pela mesma proporção do déficit habitacional: faltam no Sudeste cerca de 2,7 milhões de domicílios, de um total de 6,9 milhões no Brasil. Os principais componentes do déficit do Sudeste são coabitação, que responde por 44%, e ônus excessivo com aluguel, equivalente a 40%. Com esses números, constatamos que acelerar a produção de moradia a preço acessível é fundamental para solucionar o déficit, e também para conter o crescimento da cidade informal, já que as novas casas são construídas quando uma família não consegue mais pagar aluguel ou viver em coabitação e encontra uma oportunidade para ocupar e edificar em um terreno livre.

 

 

Identificar os tipos e escalas das deficiências urbanas

 

É importante reconhecer e valorizar o avanço que houve, sem esquecer que ainda há muito a ser feito. O estudo do IBGE “Tipologias intraurbanas” (2017) analisou as 65 maiores concentrações urbanas brasileiras, que abrigam metade da população do país, e classificou as áreas urbanas em categorias de acordo com a qualidade das condições de vida locais. O resultado indica que temos 23,9% da população avaliada vivendo em boas condições, 37,9% vivendo em condições médias, 33,4% em baixas condições de vida, 4,3% em baixíssimas condições (4,8 milhões de pessoas) e 0,4% em condições precárias (373 mil pessoas). Vemos que os grupos vivendo em condições baixíssimas e precárias somam pouco mais de 5 milhões de brasileiros – um contingente importante, mas não grande demais para ser atendido por políticas direcionadas. Esse precisa ser um objetivo de curto prazo do Poder Público.

 

                          

                           Fonte: Estudo “Tipologia Intraurbana”, elaborado com base no censo de 2010.

                           IBGE, 2017. Elaboração própria.

 

 O grupo que vive em baixas condições, por outro lado, é enorme; melhorar sua situação, não pode depender integralmente de políticas públicas e nem ser um objetivo de curto prazo. Para atender essa população, o primeiro passo é entender a natureza de suas carências. A caracterização dos bairros com baixas condições de vida nos mostra que, enquanto houve muito avanço em indicadores como abastecimento de água, luz e coleta de lixo, outros indicadores continuam muito ruins. Destacam-se a falta de saneamento, baixa escolaridade, baixa renda e pouco acesso a computadores com internet. No âmbito do Poder Público, é preciso pensar em soluções para ampliar o saneamento, melhorar a educação, a retenção escolar, a qualificação profissional e o ambiente de negócios, de forma que a renda familiar possa a crescer.

 

Os desafios

 

Na região metropolitana de São Paulo, temos 27% da população vivendo em condições boas, 45% em condições médias e outros 28% em baixas condições – estes são os habitantes de bairros ainda bastante carentes, como Jardim Ângela, Capão Redondo, Paraisópolis, Heliópolis e Grajaú. É preciso concentrar os esforços para melhorar a qualidade urbana desses bairros. A coleta de esgoto é o indicador mais precário, e sua universalização não pode mais ser adiada. É fundamental que a prefeitura atue com a Sabesp (responsável pelo saneamento) para que, junto com as redes coletoras, sejam implantadas redes viárias completas, com drenagem da água da chuva, calçadas, iluminação pública e, sempre que possível, ruas que permitam a coleta de lixo porta a porta, como é feito na cidade formal.  

 

Além dessa frente de ação, que envolve obras de infraestrutura, há uma segunda frente, de natureza administrativa, que consiste em promover uma série de pequenos ajustes regulatórios para rever regras que constrangem os mercados construtivo, imobiliário e habitacional e que mantêm os preços da moradia excessivamente altos, empurrando as famílias mais pobres para a ocupação ilegal de terrenos inadequados e a autoconstrução. Nesta frente, encontram-se ações como a regularização fundiária das favelas, a aplicação dos instrumentos urbanísticos que combatem a ociosidade de imóveis localizados na cidade formal (IPTU progressivo no tempo e PEUC – Parcelamento, Edificação e Uso Compulsórios, entre outros) e a flexibilização de regras que restringem o adensamento populacional de áreas centrais providas de infraestrutura, regras como os recuos obrigatórios e os gabaritos máximos.

 

A continuidade dessas políticas no médio prazo, ao longo de sucessivos mandatos políticos, é fundamental para o avanço na cidade informal. Tanto na frente de obras quanto na regulatória, as deficiências não serão corrigidas no curto prazo, sendo fundamental que cada nova leva de políticos, independentemente de suas inclinações ideológicas ou partidárias, se comprometa com a agenda de urbanização da cidade informal e inclusão social na cidade formal.

 

Caminhos para o futuro

 

Como vimos neste artigo, apesar dos graves problemas que persistem nas cidades brasileiras, aconteceram importantes avanços. Algumas circunstâncias históricas contam a nosso favor: o crescimento da população brasileira é atualmente muito baixo (1,17% de 2000 a 2010) e, ainda que ele seja um pouco mais alto nas áreas urbanas e concentrado nas favelas, não é nem de longe o crescimento explosivo que produziu as grandes urbanizações precárias das décadas de 1960 e 1970. Por outro lado, uma parcela importante da população brasileira continua presa num ciclo de baixa escolaridade, baixa produtividade,  baixa renda  e exclusão social. Nas cidades, as favelas são guetos de condições ruins de vida e extrema escassez de oportunidade. O ensino público tem qualidade insuficiente, os professores estão desmotivados e cerca de um terço dos alunos seguem abandonando a escola antes de concluírem o Ensino Médio, ficando condenados a trabalhos mal remunerados no futuro. Gestações na adolescência e a perspectiva de renda e status trabalhando para o tráfico de drogas também contribuem para a evasão escolar. Oferecer aos jovens conhecimento, formação e oportunidades é fundamental para interromper o ciclo de exclusão dos moradores das favelas.

 

Razões para otimismo

 

O Arq.Futuro acompanha de perto as transformações ocorrendo em um desses bairros, uma comunidade de cerca de 15 mil habitantes chamada Jardim Colombo, que é vizinha de Paraisópolis, em São Paulo. Lá, vemos as várias deficiências urbanas da cidade informal: irregularidade fundiária, saneamento e coleta de lixo insuficientes, falta de espaços públicos. Mas também vemos diversas razões para o otimismo. A comunidade tem lideranças mobilizadas e em diálogo constante com o Poder Público para garantir que o bairro não seja esquecido nos planos de obras e serviços. Os indivíduos mostram criatividade e resiliência ao lidarem com as dificuldades do dia a dia, criando seus negócios e melhorando suas casas sem esperar passivamente por soluções do governo. Ainda que muitos jovens abandonem os estudos e estejam desempregados ou com poucas perspectivas profissionais, sua situação tende a ser melhor do que a da geração de seus pais. No nosso próximo artigo, apresentaremos o trabalho que fazemos no Jardim Colombo e as mudanças que testemunhamos lá.

 

 

Artigo publicado originalmente na coluna do Arq.Futuro no portal da Casa Vogue.