Entrevista | Johnny Borges

Para gerente da Fábrica de Cultura do Capão Redondo, é preciso romper fronteiras imaginárias entre centro e periferia
06/10/2015
Compartilhar:

Johnny William Cruz Borges, 30, é um cara inquieto. Fala rápido, divaga, articula. Ativista e advogado, Johnny é o gerente da Fábrica de Cultura do Capão Redondo, iniciativa da Secretaria de Cultura de São Paulo, na zona sul da capital paulista. Nascido no distrito do Capão, filho de pai eletricista e mãe cerzideira, no bairro Jardim Lídia – das “trutas e quebradas” nos versos dos Racionais –, Johnny conversou com o Arq.Futuro sobre suas #inquietações paulistanas, nas “pontes imaginárias” entre a cultura do centro e da periferia. Confira:

Quem é Johnny?
Sou advogado e ativista. Estudei na Escola Luiz Tenório de Brito. No colégio existia um sorteio para participar de um curso de informática e cidadania na Ong Casa dos Meninos, no Jardim Capelinha. Por insistência minha – e desistência dos colegas de classe –, consegui uma vaga. Depois, virei “agente jovem” nessa Ong, uma parceria com a Escola da Vila. Aí comecei a me envolver com questões mais politizadas, conferências, encontro, Fórum Social Mundial. Mergulhei fundo nas discussões sobre políticas públicas para a infância e a juventude. Isso era 2001, 2002. E hoje, 2015, muitas questões continuam atuais, por exemplo, a discussão sobre a redução da maioridade penal. Depois fui trabalhar na Ong Brasil Campeão, ligada à Fundação Dixtal. Tínhamos um prêmio para estudantes de 8ª série que desenvolvessem ações sociais – os melhores ganhavam uma viagem para Brasília. Eu estava no 1º colegial e virei consultor. Fiquei dando palpite. Nessa conheci Albert Holzhacker, presidente da fundação. A gente começou a trocar várias ideias. Eu sempre fui muito bocudo. Uma vez, discordei do presidente durante uma reunião. Tinha 16, talvez 17 anos. Ele virou: “você é uma das poucas pessoas que têm coragem de me contradizer – e às vezes preciso disso”.

Sempre trabalhou com questões relacionadas a infância e juventude? 
Sim. Depois fui para o Instituto Rukha, onde trabalhei com cerca de 200 famílias no Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luís. Nós, educadores, visitávamos essas famílias para tentar inspirar uma quebra de paradigma de vida – a maioria delas estava envolvida com exploração do trabalho infantil, tipo malabares na rua e bala no farol. Fiquei outros quatro anos por lá. Depois veio a oportunidade no Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, o famoso instituto do Luciano Huck. Coordenava o núcleo de ação social. A meta: estimular jovens a retribuir à sociedade um pouco da formação audiovisual e cidadã que recebiam no espaço, por exemplo, com a produção de filmes com temática social. Foi a primeira vez que saí dos arredores do Capão Redondo, e comecei a trabalhar com jovens da cidade inteira. Agora voltei ao Capão: sou gestor cultural na Fábrica de Cultura.

Como é o trabalho na Fábrica?
É um baita desafio. É um espaço público, dentro de uma gestão pública, dentro de uma região desafiadora para o poder público. A ideia é trazer a galera para se apropriar do espaço. Diferentemente de outras Fábricas, nosso prédio não está nas avenidas principais. É no meio do nada mesmo, dentro da periferia. Abrimos as portas para mais de 1.250 jovens matriculados nos programas de formação livre, como audiovisual, circo, capoeira. Já o público dos eventos especiais é muito variado: 70 pessoas para ver uma peça, 3.000 para ver um show. Tudo grátis. A ideia é transformar a fábrica num polo cultural, atraindo gente nova e gente “antiga”, por exemplo, artistas da periferia que, com o tempo, se afastaram da periferia. Transformar a cidade a partir da cultura – circo, cinema, literatura, maracatu, teatro, misturar pra ver o que vai dar, como diz uma música do Rappa. Existe uma ponte imaginária entre a periferia e o "centro" – o que, na periferia, nós chamamos de "burguesia", sejamos claros. Precisamos quebrar os paradigmas dessa ponte imaginária.

Como romper essas fronteiras entre centro e periferia?
Trazer gente de lá, mandar gente pra lá. Consigo transitar nos dois mundos, nos dois lados da ponte. Desde a década de 1990, a periferia era um “triângulo das bermudas”, com índices de criminalidade altíssimos, ultrapassando países em guerra. Depois, as coisas foram melhorando, por um movimento da própria periferia. E não dá para esquecer um fator: o rap. Quer dizer, perifa não é só futebol e pagode. O rap deu empoderamento à periferia, uma cultura forte que pretendia mudar a realidade política. Depois vieram outros movimentos, Ferréz se tornou um grande poeta da literatura marginal, os saraus símbolos, Herculano, Brasa, Binho etc. A cultura da periferia começou a ser vista e valorizada – e o estudante da PUC começou a frequentar, o menino da Cásper Líbero quis escrever a respeito; o menino do Capão atravessa a ponte e visita o Itaú Cultural e assim por diante. A periferia se firma como produto e produtor de cultura. É engraçado: antes eu não acreditava no poder de transformação social através da cultura. Defendia cidadania, manifestação, politização pura. Mas aprendi, com o pessoal mais jovem dos diversos institutos pelos quais passei, que a cultura é, sim, poderosa.  

No primeiro Encontro #INQUIETACOES_SP, nos estúdios do Instituto Criar, você estava em casa. Seguindo o mote do concurso de argumentos cinematográficos, que história você contaria para reinventar São Paulo?
Várias histórias. Uma delas seria ficção científica, com comédia. A gente precisa aprender a rir para São Paulo. Nós estamos acostumados a usar São Paulo como uma cidade de trabalho, uma cidade caótica e violenta, sem alegria. E esquecemos que dá para construir uma cidade melhor. Precisamos olhar para São Paulo com outros olhos. Eu sou índio, você é japonesa, ali ao lado tem boliviano, haitiano, judeu. Existem muitas cidades periféricas dentro de São Paulo. Precisamos de políticas progressistas mais ousadas para mudar essa realidade. Mas enquanto o cidadão ficar preso por duas, três, quatro horas no trânsito, dificilmente terá tempo e energia para pensar no resto da cidade. Quando eu estava trabalhando com famílias vulneráveis, na erradicação do trabalho infantil, aprendi uma coisa muito simples, mas muito importante. Você vai conversar com as famílias – se estiverem passando fome, elas não vão dar atenção a mais nada. Então, se você for conversar sobre mudar a cidade e o cidadão estiver preso no trânsito ou cair num buraco na calçada, não adianta. Se não consigo nem andar na minha calçada, como vou pensar em salvar o Rio Pinheiros ou o parque tal? John Nash dizia que a gente só faz o melhor se o melhor for pensado para si e para o outro. É por aí.