Inundação: Arquitetura em tempos de instabilidade política

19/09/2017
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Em meados do século XVIII, a Encyclopédie (1751-1766) [1] é publicada na França. O livro, que inclui artigos de mais de 150 autores, veio dar expressão ao pensamento progressista e positivista característico do Iluminismo por meio da compilação e difusão do estado do conhecimento das ciências, artes e ofícios à época.  Os 35 volumes que constituem sua primeira edição tiveram profundas repercussões políticas, sociais e intelectuais. Em um momento no qual o conhecimento científico era restrito a uma pequena parcela da sociedade, tal projeto de difusão de conhecimento foi entendido como uma crítica à monarquia vigente. Isso, por um lado, levou inicialmente à excomunhão de quem o lesse e à sua inclusão na lista de livros proibidos pela Igreja Católica Romana. Por outro, atraiu a contribuição de figuras notáveis como Jean-Jacques Rousseau, Voltaire e A.-R.-J. Turgot. A Encyclopédie, hoje vista como um monumento ao pensamento livre e crítico, contribuiu para a formação da base intelectual que culminou na Revolução Francesa. [2]

 

Dois séculos mais tarde, o filósofo Hubert Damisch inicia o seu livro Arca de Noé: Ensaios sobre arquitetura com um resgate à Encyclopédie para refletir sobre a arquitetura. Damisch faz um paralelo entre o termo “Arquitetura” (escrito pelo arquiteto Jacques-François Blondel) e outro que o precede, “Arca” (escrito pelo abade Edme-François Mallet). [3]

 

O artigo de Edme-François Mallet sobre a arca do Gênesis é uma de suas mais longas contribuições dentre os 562 artigos escritos pelo autor para o livro. Elaborado por um membro do clero, “Arca” surpreende, por exemplo, ao receber cinco vezes mais colunas de texto que “Anjo” e sete vezes mais que “Aleluia”. Inicialmente, diversos autores questionaram tamanha importância dada ao tema. No entanto, o mais curioso é a forma como o autor decide por conduzir sua descrição. Mallet em nenhum momento elabora sobre os aspectos teológicos dessa história do Antigo Testamento e suas ramificações, controvérsias ou simbolismo. No lugar disso, Mallet discorre de forma científica, única e diretamente sobre os aspectos construtivos, logísticos e materiais da Arca. Por exemplo, o autor detalha desde o tamanho da embarcação e o tipo de madeira utilizada até a forma de se acomodar a quantidade extra de ovelhas necessária para alimentar os carnívoros ali presentes. Um problema, no caso, mais arquitetônico do que teológico. [4]

 

Similarmente, “Arca” recebe três vezes mais espaço que o artigo de Blondel “Arquitetura”. O sucinto texto de Blondel relaciona a arquitetura à arte de construir e a divide em três categorias: civil, militar e naval. Por sua vez, o artigo “Construção” [5] (descartando as seções que dizem respeito às construções gramatical e geométrica) é majoritariamente endereçado à construção naval, destinando irrisório espaço para a arquitetura. [6]

                                                            

Definindo a Arca como elemento pertencente ao terceiro tipo da taxonomia de Blondel e invariavelmente dependente da descrição de “construção” da Encyclopédie, Hubert Damisch aponta para a interdependência e complementaridade dos termos “Arca”, “Arquitetura” e “Construção”. Interdependência essa em que se faz necessário entender um termo por meio dos outros, e em que a sua separação tornaria as leituras incompletas. Logo, a Arca, ao mesmo tempo em que representa uma construção naval, também serve de complemento semântico para a arquitetura[7]

 

Embora a Arca de Noé seja tradicionalmente associada à ideia de salvação, sua história somente é possível em um contexto de destruição. A série de ações que precedem o desfecho conciliatório é necessariamente de caráter negativo: o desgosto e a subsequente punição de Deus sobre o homem; o dilúvio contínuo por quarenta dias e a incerteza arrastada por outros 150 dias sobre uma possível volta à vida na terra; e a aniquilação e redução dos seres vivos a um número ínfimo de exemplares por espécie. Nessa passagem, destruição e salvação são lados opostos da mesma moeda. A inundação é tanto o evento catalisador da catástrofe como o meio através do qual a redenção é possível.[8] Assim, Damisch apresenta a entrada da “Arca” na Encyclopédie em perspectiva à volatilidade política da época, como se a posição e atenção dada a ela exaltasse o pressentimento de uma inundação. Simbólica ao invés de material, a inundação representaria o impacto da Revolução Francesa no modo de pensar do sujeito europeu. [9]

 

Da mesma maneira como o etos da Revolução foi personificado na derrubada de um símbolo arquitetônico – a Bastilha –, Damisch defende que a arquitetura sempre manteve uma relação próxima com a noção de catástrofe. O autor sugere que essa relação pode ser ilustrada no lema corbusiano “Arquitetura ou Revolução!”, no qual a arquitetura serve de instrumento para apaziguar ou prevenir a catástrofe, ou ainda o meio para sobreviver a ela. [10] Tal lema apresenta a ilusão de uma possível transição pacífica entre condições antagônicas, como, no início do século passado, entre o capitalismo e o socialismo. Nesse cenário, a arquitetura escolhe a reforma no lugar da revolução. [11]

 

Ao se trazer essa discussão para o contexto político brasileiro, vê-se na atual crise um paralelo com a noção de catástrofe discutida por Damisch. No entanto, nesse contexto, a posição da arquitetura deve ser revisada. Já desprovida de credibilidade e envolta em ceticismo sobre seu impacto nos rumos da cidade, a arquitetura deve se relacionar à revolução de forma diferente. Em vez da arquitetura se propor a mitigar o impacto de mudanças estruturais, a associação entre ambas deve ocorrer em polos mais extremos. Nesse caso, a catástrofe se transforma diretamente em um ímpeto para a prática arquitetônica ou, sem procurar um meio termo, em seu antídoto, inibindo-a.

 

Se, na Arca de Noé, a água tem o papel paradoxal de trazer tanto o desastre como a salvação, na crise brasileira recente esse papel foi deslocado para a ética. A descrença na ética política e a necessidade da sociedade se redimir por ela são os equivalentes a prólogo e epílogo da referida odisseia sobre a água. Lembrando Pierre Reverdy, “a ética é a estética de dentro” [12], a falta de beleza para com o coletivo foi o caminho que levou ao estado sociopolítico atual: a falta de compromisso com a verdade; a depreciação da política; a descrença nos representantes do governo e do setor privado; e a crise econômica.

 

Isso não é de espantar, uma vez que a relação entre a ética e a política é notavelmente complexa. Há correntes de pensamento que classificam a política como pertencente à ética, um ramo seu. Numa segunda visão, pode-se entender que são distintas. Nesse caso, a ética refere-se unicamente à reflexão sobre a ação do indivíduo, enquanto a política refere-se à reflexão sobre a ação do governo ou da sociedade. Por fim, numa terceira abordagem, a política pode ser vista de forma a regular a ética, quando, por exemplo, as regras estipuladas pelo Estado determinam os deveres morais de seus cidadãos. [13]

 

Apesar do caráter negativo da atual catástrofe ética, seus desdobramentos também têm lados positivos. Vê-se um crescente engajamento político da sociedade por meio de debates em praças públicas; de greves e manifestações; e da opinião moral e política em maior evidência. Merece destaque o fato de que tais atos são físicos, diferentemente dos períodos de recessão nos quais muitas vezes sua natureza é teórica. Rem Koolhaas, por exemplo, explica que, em momentos de crise econômica, quando há uma correlação entre crise, desemprego e introspecção, a maioria dos manifestos sobre arquitetura têm forma escrita. [14] Nesse contexto, Damisch sugere que “[...] não é menos significativo que a própria arquitetura procure fazer um retorno como objeto teórico (e como um domínio de objetos) em um momento em que a ameaça de uma catástrofe generalizada tornou-se tão comum que não podemos continuar fingindo que estamos esperando os meios de vencê-la através da arte da construção.” [15]

 

Em contraste com o valor associado à possibilidade de reflexão teórica que tais momentos proporcionam, o recuo da arquitetura em frente à crise demonstra uma disciplina que se recusa a abraçar as problemáticas envolvidas nos processos contemporâneos da construção. Ao se identificar como uma prática somente artística ou intelectual, a arquitetura evita participar dos mecanismos envolvidos na indústria da construção e do mercado imobiliário de forma a não se associar com a imagem de um negócio. Isso se mostra como uma dissimulação precária, em que a profissão desperdiça o benefício da reciprocidade com essas outras áreas, claramente dependentes umas das outras. [16] A teórica e crítica da arquitetura Diane Ghirado descreve como essa prática se reflete em uma falta de engajamento com o mundo real da construção e em uma recusa de responsabilidade por parte da disciplina. [17]

 

Essa imagem de pureza é justamente o que precisamos evitar em momentos de crise. A disciplina deve tomar como inspiração a fisicalidade desses outros movimentos para “sujar as mãos” e resgatar sua parte da responsabilidade sobre a construção da cidade. Este é um momento para propor e implementar novos modelos de intervenção na cidade; para reformular a relação da arquitetura com as outras práticas relacionadas à construção por meio de formas alternativas de colaboração; e para se utilizar do projeto para repensar o “para quem”, “onde” e “por quanto” do construir. Trata-se de mudanças que virão em escalas distintas, tanto por meio de iniciativas individuais como por colaborações entre arquitetura, empresas privadas e governo. Evita-se, assim, a catástrofe como um antídoto para a arquitetura, para se tornar, ao contrário, uma oportunidade.

 

Assim como no centro da ética há a preocupação com algo que é externo à recompensa individual, com valores relacionados aos interesses coletivos, na essência da arquitetura situa-se o vínculo com o social. Vínculo esse que diz respeito ao relacionamento entre indivíduos no espaço e suas maneiras de se organizar em sociedade, questões inseparáveis do conceito de cidade. Logo, o aspecto fundamental da arquitetura que se refere à esfera coletiva e ao engajamento social precisa ser explorado, necessariamente, no espaço urbano.

 

Insistir em questões como o direito à cidade e a necessidade de trazer a moradia popular para os centros urbanos, por exemplo, é crucial se o objetivo é discutir o compromisso ético da arquitetura na construção da cidade. Felizmente, esses são tópicos que já não são mais discutidos no tempo futuro, mas colocados com a urgência de algo iminente. Em relação à habitação, após anos de reflexão por parte de intelectuais e a exaustão de políticas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida, o tema está saindo da pauta unicamente da arquitetura e se tornando inevitável em qualquer debate sobre cidades. Assim, justamente neste momento de maior instabilidade política, a ação sobre esses tópicos deve ser colocada como a única possibilidade para sair da crise. Humbert Damish relembra que Engels defendia que a solução para a questão da habitação só seria possível por meio de uma revolução. [18] Há momento mais propício para uma revolução sobre os modos de fazer cidade do que um em que as políticas vigentes já não mais se sustentam?

 

No conto do Gênesis, após a água liquidar a vida em terra, a edificação flutuante oscilou ao léu, por tempo inicialmente desconhecido por seus passageiros, até a inundação recuar e a barca adotar sua posição final no monte Ararat. Lá, uma nova sociedade foi construída. Enquanto o desastre ético e suas repercussões varrem o cenário político brasileiro, o meio de a arquitetura sobreviver, ou seja, as fundações intelectuais do compromisso da disciplina com a cidade, já está construído para flutuar e deixar o problema passar. Agora, cabe a nós, arquitetos, encontrar maneiras de agir em frente à crise, para que, quando as águas recuarem, o aspecto coletivo da cidade esteja no lugar certo e pronto para se recriar.

 

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[1] DIDEROT, Denis; D'ALEMBERT, Jean Le Rond (Ed.). Encyclopédie, Ou Dictionnaire Raisonné Des Sciences, Des Art et Des Métiers, vol. 1. Paris, 1751.

[2] BLOM, Philipp. Enlightening the World: Encyclopédie, the Book That Changed the Course of History. New York: Palgrave Macmillan, 2005. p. xiii.

[3] DAMISCH, Hubert. Noah’s Ark: Essays on Architecture. Cambridge, MA: The MIT Press, 2016. 371 p. (Writing Architecture).

[4] REX, Walter E. ‘Arche de Noe’ and Other Religious Articles by Abbe Mallet in the Encyclopedie. Eighteenth-Century Studies, vol. 9, no. 3, 1976. p. 333.

[5] BLONDEL, Jacques-François; BELLIN, Jacques-Nicolas. Construction. In: DIDEROT, Denis; D'ALEMBERT, Jean Le Rond (Ed.). Encyclopédie, Ou Dictionnaire Raisonné Des Sciences, Des Art et Des Métiers, vol. 1. Paris, 1751.

[6] DAMISCH, Hubert. Noah’s Ark. Op. Cit. p. 9.

[7] Ibid. p. 10.

[8] Ibid. p. 19.

[9] Ibid. p. 18.

[10] Ibid. p. 18.

[11] SCOTT, Felicity D. On Architecture under Capitalism. Grey Room, no. 6, p. 45-65, 2002. p. 59.

[12] REVERDY, Pierre. Le livre de mon bord: notes 1930-1936. Paris: Mercure de France, 1970.

[13] SIDGWICK, Henry. The Methods of Ethics., 4th ed. London, New York: Macmillan, 1890. p. 16.

[14] KOOLHAAS, Rem. Recent Work. In: CARVER, Jordan, ed. Preservation Is Overtaking Us. GSAPP BOOKS, 2014. (GSAPP Transcripts). Disponível em: https://www.arch.columbia.edu/books/reader/6-preservation-is-overtaking-us. Acesso em: 20 jun. 2017.

[15] “[…] it is no less significant that architecture itself seeks to make a return as a theoretical object (and as a domain of objects) at a time when the threat of widespread catastrophe has become so commonplace that we cannot continue pretending to wait for the means to vanquish it through the art of building.” DAMISCH, Hubert. Noah’s Ark. Op. Cit. p.22.

[16] GHIRARDO, Diane. Architecture of Deceit. Perspecta, vol. 21, p. 110-115, 1984. p. 3.

[17] Ibid. p. 6.

[18] DAMISCH, Hubert. Noah’s Ark. Op. Cit. p. 15.