Mauro Calliari | O resgate da urbanidade de SP

Para autor, há um desejo evidente de reapropriação do espaço público na capital paulista. Resta ir além
02/10/2015
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Estamos vivendo um momento histórico. Após um longo período de descaso, os paulistanos parecem dispostos a tomarem de volta seus espaços públicos.

O espaço público é o palco onde convivemos com pessoas que não são nossos conhecidos. É através dessa difícil convivência entre os diferentes que nos conhecemos e que desenvolvemos nossa própria identidade. Os espaços de fruição da cidade são as praças, os parques, as ruas, as feiras, as estações, lugares onde a troca diária e os encontros acontecem ao acaso.

A configuração atual da cidade de São Paulo conta a história de uma relação conturbada entre seus habitantes e seus espaços públicos. Vamos passear por essa história para entender como chegamos ao ponto em que estamos.

Nos primeiros séculos de São Paulo, a vida corria ao acaso. A vila era isolada da costa pela enorme barreira da Serra do Mar. As notícias demoravam a chegar. A cada bandeira, a cidade se esvaziava. Os fazendeiros moravam longe do centro, em suas chácaras e só vinham à cidade para comerciar ou fazer política. Com esses predicados, a vida na cidade foi, no mínimo, modorrenta nos primeiros séculos. A vida pública era regulada pela Igreja. As procissões e missas eram as poucas atividades que estimulavam o encontro. No resto do tempo, as ruas eram território dos escravos. As mulheres ficavam em casa, escondidas, até que fossem liberadas para as únicas funções públicas permitidas: os eventos religiosos.

No início do século 19, a vinda do governo da província para cá pouco ajudou a dotar a cidade de espaços de fruição, com a possível exceção do Jardim Público, futuro Jardim da Luz, de 1825. A instalação da Academia de Direito do Largo São Francisco tampouco conseguiu mexer com a falta de lugares de encontro, o provincianismo e a falta de assunto. Mas tudo começou a mudar no final do século 19. A vida pública ganhou novos ares com o café, o desenvolvimento econômico, o fim da escravidão, a indústria e a imigração. A cidade descobriu as dores e a delícia da diversidade. No lugar de papéis sociais pré-determinados, a negociação. No lugar da autoridade patriarcal absoluta, a civilidade.

As atas da Câmara da época expõem a perplexidade diante dos novos conflitos: "onde jogar os dejetos", "como coibir as pessoas de tomarem banho nuas no Tamanduateí" ou ainda "como melhorar a circulação nas calçadas cheias de vendedores". Foi nesse momento que a elite passou a pleitear a ocupação da cidade. Os espaços públicos do início do século 20 são a expressão desse desejo de fruição da cidade: o conjunto afrancesado do Vale do Anhangabaú, o Parque D. Pedro II e a urbanização do centro novo.

Mas a ilusão da urbanidade durou pouco. 

A cidade cresceu nas primeiras décadas do século 20. E logo espraiamento começou a minar uma das características importantes da fruição da cidade, a diversidade. Indústrias que se instalavam ao longo da linha do trem atraíam os operários, mas a elite foi ocupando a área oposta, em direção a oeste, fazendo diminuir o convívio entre classes sociais diferentes. Outro golpe para a fruição das áreas públicas veio com o Plano de Avenidas, de 1930. O predomínio dos automóveis provocou uma perda de protagonismo do pedestre e o carro ganhou espaço até dominar por completo o imaginário coletivo.

Os eixos viários que foram sendo construídos nas décadas seguintes cortaram bairros ao meio, destruindo casas e segregando vizinhanças, por exemplo, na Bela Vista. As avenidas construídas nos fundos de vale, para aproveitar espaços vazios trouxeram outro golpe sobre a paisagem: o enterramento dos rios, tornados invisíveis e sem nenhuma chance de aproveitar suas margens para a criação de espaços de convivência. A vitória dos carros sobre os antigos espaços públicos mudou a configuração de alguns espaços emblemáticos da cidade.

O descaso com o passado recém-construído da cidade também gerou a transformação do Vale do Anhangabaú, de recinto suntuoso numa vulgar passagem de carros. A mentalidade rodoviarista se manifesta também na cena da Praça da Sé em construção por décadas, enquanto milhares de carro estacionam em frente.

A situação piorou na década de 1970, com um processo de negação da cidade, que se traduz nos shoppings, nos condomínios murados, nos centros empresariais. A violência, de fato, havia aumentado, mas as soluções foram discutíveis e os resultados foram os enclaves onde se trabalha, se mora, e se compra dentro de muros, sem precisar colocar o pé no chão da rua. Os muros isolam a calçada, criam áreas inseguras, às vezes ao lado dos próprios condomínios, concebidos para garantir a entrada e saída de carros e às vezes sem acesso para pedestres. Para piorar, o centro da cidade, que estava perdendo seu caráter simbólico, ganha um golpe feroz: o Minhocão, construção que desprezou as ruas, as praças e os largos existentes, produziu uma cicatriz no centro e acabou com as vidas dos seus vizinhos.

É possível que tenhamos chegado ao fundo do poço na virada do século 21, diante de uma cidade que não permite a fruição da diversidade e onde quem pode se isola cada vez mais. Mas a história não terminou. Para os que advogam que a cidade é um organismo vivo, há sinais de que esse organismo esse movendo em outra direção.

Os sinais são claros. No espaço de uma década, começamos a ver mais e mais gente nas ruas. Há multidões em cada virada cultural, as praças começam a ser retomadas pelos vizinhos, milhões aparecem para curtir a Avenida Paulista no Réveillon, no Natal e até nas manifestações de todos os tipos e matizes.

A cada pequena intervenção, as pessoas respondem, entusiasmadas. Desde um parklet que oferece uma parada na correria até a Praça Roosevelt, uma tampa viária que, reformada, trouxe o saudável conflito entre grupos que querem ocupá-la. Há um desejo evidente de reapropriação do espaço público.

Se as pessoas estão querendo reocupar o espaço público, é preciso aproveitar. Há muito a fazer para garantir a qualidade da experiência da vida em público: é melhor encarar o conflito do que fugir dele. A constatação do conflito é sinal de maturidade – e não adianta imaginar que o simples bom senso vai dar conta de resolvê-lo.

Na Praça Roosevelt, por exemplo, foi preciso ter intervenção da prefeitura para poder resolver o conflito entre skatistas e demais frequentadores. Se a educação não dá conta de resolver conflitos, o poder público deve mediá-los, e de uma maneira mais inteligente. Senão, como vamos lidar com as cracolândias, com as áreas de ninguém? Ou mesmo com a discussão sobre o Minhocão: sem um debate não dogmático, não resolveremos o conflito entre os que querem um parque, os que querem sua destruição e os que são contra qualquer coisa.

Um ponto no mapa não é suficiente para visualizar uma praça, assim como uma linha não é suficiente para visualizar a experiência de andar numa calçada. São os detalhes que fazem a diferença na experiência diária. Um mísero buraco de 5 centímetros ou uma saliência na calçada são suficientes para um pé torcido. As calçadas, aliás, são o elemento mais básico da urbanidade. Sim, elas servem para andar. Mas é nas calçadas que encontramos pessoas, sentamos numa mesinha, olhamos vitrines. A lei das calçadas foi um bom começo, mas não há nada a comemorar enquanto a cultura dominante não for a de boa “andabilidade”.

Não basta falar de mobilidade, é preciso pensar na fruição. Já se chamaram as estações de transportes de "não-lugares", mas é lá que os habitantes da Grande São Paulo passam grande parte do tempo. Por que não transformá-las aos poucos em espaços mais agradáveis? Bancos, para citar apenas um item, são tratados como um estorvo em lugares de alto fluxo, mas, quando se espera por um ônibus, não há razão para não fazê-lo sentado.

A periferia e as áreas precárias da cidade precisam de muito cuidado. Além de infraestrutura básica, as pessoas precisam de pontos de encontro. Basta ver como os CEU´s são usados nos finais de semana. Faltam praças e parques, mas vale a pena começar com calçadas que possam ser usadas.

O Plano Diretor foi um começo. Há estímulos claros à fruição do espaço público, mas a moeda de troca para cada mexida parece estar concentrada apenas no direito de construir acima do coeficiente básico. Devemos ir além. As operações urbanas nos ensinaram que, sem desenho urbano, o resultado concreto de bilhões de reais em investimento são mais pontes, mais túneis, mais ruas. O espaço público deveria ser o ponto de partida de novas operações e não o que sobra depois da construção de todos os novos prédios.

Para terminar, não precisamos de mais espaços fechados, podemos fazer compras na rua, andar na rua, encontrar gente ao acaso na rua. As novas intervenções devem buscar, obstinadamente, satisfazer esse desejo de ocupação. As novas praças, largos, estações, mercados devem ser mais bem discutidos e ganhar bancos e sombra e cafés em vez de projetos burocráticos. As pessoas já se deram conta de que o está sendo construído agora vai durar a sua vida inteira.