Notas para um novo paradigma de desenvolvimento | Parte 2

É preciso reinventar papéis de governos, empresários, pesquisadores, para não perder mais oportunidades
05/10/2015
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Por Lídia Goldenstein e Stela Goldenstein

Na cidade de São Paulo, a morosidade de algumas das mais ambiciosas tentativas de inovar nas políticas para regeneração urbana provavelmente confirma esse dilema. Presenciamos sistemática dissociação entre os projetos urbanísticos e os programas que seriam necessários para dar suporte às empresas e setores capazes de induzir uma espiral positiva de expansão econômica, impulsionadas por inovação, tecnologia, design, enfim, a nova economia. Ancoradas apenas na construção civil e no urbanismo, a revitalização das cidades não chega a ser um sucesso.

Já as experiências internacionais têm mostrado inúmeros casos de sucesso, em países muito diferentes em termos de cultura, perfil econômico, renda, tamanho da população ou inserção internacional, onde políticas locais, estruturadas de forma abrangente, têm gerado transformações radicais de suas estruturas produtivas, em períodos relativamente curtos, de uma década.

A intensificação do processo de globalização de suas economias, a valorização das novas tecnologias e a consolidação de um novo paradigma produtivo, no qual os ativos intangíveis têm peso crescente, deram às cidades mais globalizadas, conectadas aos grandes centros decisórios internacionais, uma capacidade de atuação muito mais relevante. As políticas ao alcance dos gestores públicos das cidades assumiram possibilidades de interferência que até pouco tempo eram restritas às políticas nacionais. A dependência de políticas macroeconômicas nacionais, ainda que persistente, muda de caráter.

Essas cidades passaram a procurar alternativas mais promissoras, a partir da compreensão de que a atividade manufatureira, que historicamente lhes deu base de sustentação para a expansão de empregos e para a geração de riqueza, já não cumpre esse papel. Os novos empregos, de maior qualificação e melhor remuneração, o dinamismo multiplicador de iniciativas e de empreendimentos mudou de polo: estão nas chamadas “indústrias criativas”.

Percebendo o potencial gerador de dinamismo desses novos setores, cidades como Londres, Berlim e Nova York passaram a ter políticas proativas, competindo entre si para atraí-los. As políticas públicas passaram a apoiá-los de forma articulada: regulação, financiamento, subsídios, apoio gerencial e à instalação física, contratos privilegiados, compras governamentais, treinamento e grande desburocratização. No Brasil, ao contrário, as políticas frustradas continuam – e o aprendizado é lento, senão nulo.

As poucas tentativas de políticas mais inovadoras sofrem com seu isolamento na própria máquina pública, não chegando a se constituir como núcleos com capacidade de modificação das relações entre a cidade e os setores sociais, produtivos e de conhecimento com os quais pretendem dialogar.

Um bom exemplo é a criação de uma agência para o fomento do cinema, atividade reconhecidamente considerada de alto potencial de geração de conhecimentos, empregos, investimentos, oportunidades, renovação urbana. A agência é necessária, sem dúvida. Mas a iniciativa, isolada, está fadada a poucos resultados, pois o estabelecimento de um polo de investimentos exige outras tantas políticas públicas, que deveriam complementá-la: desburocratização, incentivos fiscais, apoio à formação de mão de obra, novos mecanismos de financiamento etc. O exemplo é significativo, pois muitos países têm investido pesadamente na indústria de audiovisual – e a disputa pela atração de investimentos é prova do quão relevante é o setor nas economias modernas.

Outro exemplo é a Sala São Paulo, ilha de excelência no mar da cracolândia, o pior processo de degeneração da capital paulista. Diferentemente de vários casos de sucesso espalhados pelo mundo (Tate Modern em Londres, Lincoln Center em Nova York), a Sala São Paulo não foi suficiente para nuclear um processo de maior transformação de seu entorno. O que seria necessário para garantir-lhe esse papel? Provavelmente a formulação de iniciativas complementares, como a Escola de Dança prevista para se localizar logo em frente, cujo projeto muito ambicioso foi postergado indefinidamente e agora está sendo refeito. Ficam no ar as expectativas sobre sua implantação. Ali também fracassaram as tentativas de sucessivos governos de alavancar a renovação a partir de projetos pautados pelo redesenho do território e pelos investimentos na construção civil. São projetos que buscam uma dinâmica renovadora, mas que não envolveram os segmentos econômicos mais modernos, que poderiam ser a base da vida local.

Da mesma forma, as tentativas fragmentadas de formar agências de desenvolvimento, tanto no Estado como na cidade, os inúmeros projetos de adensamento econômico de zonas distantes do centro (ainda hoje verdadeiros bairros dormitórios) e as infrutíferas tentativas de construir um importante Centro de Referência de Moda e Design indicam que investimentos isolados não são suficientes. Os entraves demandam políticas abrangentes, para as quais as agências não têm missão institucional, arcabouço jurídico ou instrumentos financeiros. Urge, portanto, refletir sobre as experiências de revitalização urbana que buscaram seguir o exemplo de iniciativas de grandes cidades, assumindo arquitetura e construção civil como grandes indutores da mudança, mas que, no entanto, não levaram adiante as interações entre os diversos players que poderiam/deveriam estar envolvidos no processo e que, neste caminho, acabaram fracassando.

Há, tradicionalmente, entre urbanistas e gestores, a expectativa de que projetos urbanos, planos de intervenção territorial, planos diretores e instrumentos similares possam dar margem à mobilização de forças transformadoras. Mas não é o que se tem verificado: por mais elegantes que sejam os projetos urbanísticos e por mais sofisticadas que sejam as análises, eles não geraram a retomada de espaços degradados, a redução da desigualdade ou a geração sustentável de renda.

Além do pouco envolvimento dos diferentes parceiros e setores, outras dificuldades no âmbito da vida pública impuseram imensas dificuldades às nossas experiências de grandes projetos de intervenções urbanas: a extrema morosidade dos processos e decisões judiciais, os atrasos nos programas, a descontinuidade das metas a cada nova gestão. 

A sistemática falta de continuidade e de adesão ao que poderiam ser visões estratégicas comuns entre os sucessivos governantes é, certamente, um fator extremamente restritivo ao sucesso das iniciativas. Muitas vezes, gestores (inclusive da mesma coligação e/ou partido político) cedem ao desejo de marcar a gestão com ideias próprias, e começa-se do zero, abandonando projetos ainda em gestação ou em implantação. Assim, a desconfiança em relação ao poder público é outro fator impeditivo do desenvolvimento de novos projetos inovadores, capazes de contribuir para a reestruturação da economia da cidade e do Estado.

O padrão de relações entre o público e o privado, ainda tão conturbado, faz com que os investimentos públicos que dependem de interlocução privada para sua implantação sejam especialmente difíceis. Essa questão afeta não apenas o Estado e a cidade, mas o país todo, pois uma nova cultura da relação público-privado está se formando. As dificuldades de construção de modelos jurídicos duradouros, que viabilizem e agilizem parcerias público-privadas limitam as possibilidades de implantação de novas ideias, modelos de negócios e projetos.

Uma decorrência dessa dificuldade é o encarecimento do custo do dinheiro: em face da insegurança, em relação à continuidade dos projetos e ao padrão das relações público-privadas, o investidor exige maior retorno, o que reduz a competitividade dos projetos. Outro agravante: o investidor nacional, que historicamente tem expectativa de juros elevados e aversão ao risco, vivencia uma dualidade. De um lado, busca o suporte do poder público. De outro, padece do excesso de normatização e burocracia, restrições oriundas do mesmo poder público. Essa dualidade, bastante paralisante, favorece a manutenção dos velhos paradigmas econômicos.  

Curiosamente copiamos, ainda que sem sucesso, algumas experiências internacionais e ao mesmo tempo ignoramos outras. Um grande número de cidades europeias vem apostando, com sucesso, em políticas mais modernas, mas que, ao longo de décadas, foram consideradas marginais para nossos centros tomadores de decisões, por exemplo, a adoção de padrões verdes e sustentáveis para diferentes ações e investimentos públicos, que hoje estão no centro da solução dos problemas urbanos – e são promotores de empregos, renda e riqueza. São políticas de grande impulso para programas de retrofit urbano, de desenvolvimento de novas tecnologias, de novas especialidades técnicas e de uma multiplicidade de pequenas empresas desenvolvedoras de produtos e prestadoras de serviços.

O uso de tecnologias e padrões sustentáveis, na maior parte dos casos, depende fundamentalmente da regulação e da liderança do setor público. Incentivos para a utilização de energias limpas, por exemplo, são motores centrais de transformações urbanas e mobilizadores de volumosos investimentos privados, capazes de impactos significativos nas economias locais. Investimentos públicos pautados pelo enfoque ambiental têm grande potencial para o equacionamento dos passivos típicos dos velhos paradigmas. Ao mesmo tempo, sustentam o desenvolvimento tecnológico, a geração de empregos de bom padrão e dão margem a pequenas empresas de inovação.

Outro aspecto, presente em várias grandes cidades brasileiras, é a conurbação de vários municípios, 39 no caso de São Paulo, num único conglomerado, tornando pouco provável que políticas econômicas tenham sucesso se forem pensadas apenas para parcela desse território. São necessários padrões de compromisso entre os vários governos da região metropolitana que permitam firmar políticas tributárias regionais, suporte à formação de mão de obra e acesso a serviços comuns, permitindo que os moradores da região alcancem boas oportunidades e iniciativas de nichos econômicos com alta qualidade de emprego e geração de renda.

A insuficiência dos mecanismos de tomada de decisão conjunta entre as autoridades municipais de cada metrópole impede a formulação de estratégias que poderiam compor um quadro mais favorável para o enfrentamento dos dilemas que apontamos, que restringem fortemente a capacidade de transformação dessas regiões. Esperamos que a recente aprovação do Estatuto da Metrópole traga alento aos esforços de articulação de políticas comuns, inclusive por permitir formas diversas de organização.

Múltiplos aspectos culturais, econômicos, financeiros, jurídicos, institucionais e territoriais estão na origem e formam barreiras aos esforços para a instalação de um novo ciclo produtivo. Há entre nós uma imensa crise quanto à capacidade de planejar estrategicamente. O foco no planejamento setorial e a opção por investimentos pontuais é uma tônica que impede voos de maior alcance. Práticas autocráticas do poder público levam sistematicamente à insuficiência de procedimentos de planejamento integrados, elaborados de forma conjunta entre os setores públicos e privados, o que é um impeditivo para estabelecer sinergias complexas, das quais dependem as modernas formas de trabalho, em que se esfumaçam as fronteiras entre serviços e produtos. Cabe reinventar os papéis de governos, empresários, pesquisadores, investidores e movimentos sociais, para não perder mais oportunidades.