Precisão por especificidade

19/08/2016
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Dentro do âmbito da discussão sobre cidades e o papel da arquitetura, parece-me pertinente problematizar um dos pontos passivos e menos discutidos da formação de arquiteto: nosso título profissional.

No Brasil, o título que recebemos ao completar a faculdade de arquitetura é o de "arquiteto e urbanista". Interessa-me entender o que "urbanista" significa. A meu ver, o termo foi esvaziado de significado em virtude do seu uso indevido. Vejo colegas assinando o título completo, no lugar de somente "arquiteto", com o orgulho de quem é especialista em duas áreas, enquanto em outros países a formação que tiveram não permitiria essa prática. É evidente que o erro não é deles, mas das nossas instituições de ensino e da nossa profissão.

Posso falar pelas universidades do Rio de Janeiro, por experiência própria, mas acredito que a situação não seja muito diferente em outras universidades do país. Diversos colegas de São Paulo, por exemplo, já relataram o mesmo problema. As universidades simplesmente não preparam o estudante para ser um urbanista, a não ser que se refiram a "urbanista" como o profissional que seja minimamente capaz de pensar os aspectos da vida urbana – o que conceitualmente já estaria incluso no termo "arquiteto", e em muitos outros. O problema, inclusive, vem muito antes disso. As universidades não só não preparam, como não conseguem definir claramente o que elas querem dizer ao utilizar o termo. Elas tendem a utilizá-lo de maneira tão simplificada e abstrata como em sua concepção original do final do século 19, quando era usado para se referir ao pensamento e às práticas relacionadas a dar forma, organizar e gerir o espaço urbano.[1]

Nas universidades americanas, asiáticas e na maioria das europeias, há uma clara distinção entre uma graduação em arquitetura e uma em urbanismo. Similarmente, nessas universidades uma formação profissional em arquitetura, apesar de oferecer matérias em tecnologia de construção, história e teoria, computação, paisagismo e desenho urbano, dentre outras, não inclui nenhuma delas no título do graduado, o que se deve ao fato de a arquitetura já ser, em si, uma área extremamente abrangente, na qual existem uma infinidade de caminhos para se seguir, e que, como dever pedagógico de um curso profissionalizante, as faculdades precisam ao menos introduzir o estudante a cada um desses temas.[2]

Para as universidades brasileiras, é suficiente oferecer uma introdução ao projeto urbano, uma ênfase na implantação dos edifícios no terreno e, talvez, outra matéria em história das cidades para que o graduado seja considerado um urbanista. Se tivéssemos que ajustar o título com base na verdadeira experiência oferecida ao estudante em termos de tempo de aula, profundidade no assunto e foco, "arquitetura e urbanismo" estaria mais para "arquitetura e construção", "arquitetura e mercado imobiliário" ou, ainda, "arquitetura e interiores", visto que grande parte dos estudantes de arquitetura no Brasil acaba se especializando em questões intrínsecas dos edifícios em vez de na relação do edifício com a cidade.

No caso do MIT, onde concluí um mestrado em urban design, e co-leciono um estúdio de projeto urbano para estudantes que irão se graduar como arquitetos, "urbanismo" é raramente utilizado para se referir a uma área de estudo. Nesta universidade, em termos gerais, urbanismo (urbanism) é dividido em planejamento urbano (urban planning), projeto urbano (urban design) e sistemas de transporte (transportation systems). Cada uma dessa áreas inclui diversos subgrupos, como políticas ambientais (environmental policy), moradia, comunidade e desenvolvimento econômico (housing, community and economic development), sistemas multirregionais (multi-regional systems) etc. Um dos poucos locais onde o termo "urbanismo" é utilizado com proeminência é no Centro para Urbanismo Avançado (Center for Advanced Urbanism), que se coloca como uma plataforma multidisciplinar na qual mais de 40 professores, de diversas áreas, pesquisam e projetam soluções para problemas urbanos de larga escala.

Nessa universidade, "urbanismo" se torna um termo acolhedor de diversas e diferenciadas práticas que endereçam a urbanização no mundo, porém o mesmo não é empregado como um título profissional devido à sua abrangência e falta de especificidade. Alexander D’Hooghe, primeiro diretor do Centro, ao diferenciar urbanism de urban design, sugeriu: "'Urbanism' describes the world as it is, and also all its alternatives. Taken this way, it now means everything and its opposite. Such a word does not deserve to exist. (...) Reality is the field of urban studies. Aspiration is that of urban design.[3] [4]

Nem realidade, nem aspiração. Dizer que é urbanista é igual a dizer que não é nada; talvez seja essa a peça que temos pregado aos nossos estudantes.

Meu primeiro período no MIT foi o momento em que mais trabalhei em toda a minha experiência acadêmica pois estava claramente despreparado para projetar na escala urbana, tanto em termos de prática, como de ferramentas e teoria. Foi uma luta compensar a lacuna na minha educação que era preenchida por um título. Hoje, tendo passado por isso, vejo a mesma situação se repetir com todos os brasileiros que vão estudar "urbanismo" fora. Já encontrei estudantes em Harvard, MIT, e em universidades na Inglaterra e na China, que experimentaram a mesma dificuldade.

Acredito que a maneira de evitar tal inadequação para as futuras gerações é reconhecer o desalinhamento existente entre o que dizemos que fazemos e o que realmente oferecemos academicamente. Devemos estar cientes de que estamos formando somente arquitetos – e que o atual título deveria ser simplificado – ou precisamos de uma revisão curricular. Talvez o primeiro passo para essa mudança seja passarmos a usar as palavras corretas para cada assunto devido.

Notas
* Uma versão anterior deste texto foi originalmente concebida para a Revista Prumo. (KOZLOWSKI, Gabriel. Precisão por Especificidade. Revista Prumo, Rio de Janeiro, n. 2, 2016).  
[1] MILROY, Beth Moore. Thinking planning and urbanism. Vancouver: UBC Press, 2009. p. 19.
[2] Para que ele seja competitivo no mercado, não basta apenas ser um arquiteto capaz de projetar, mas também ser proficiente em vários destes pontos simultaneamente.
[3] D’HOOGHE, Alexander. The liberal monument: Urban design and the late modern project. New York/ Rotterdam: Princeton Architectural Press/ Berlage Institute, 2010. p. 13.
[4] Tradução do autor: "'Urbanismo' descreve o mundo como ele é, e também todas as suas alternativas. Dessa maneira, ela agora significa tudo e seu oposto. Tal palavra não merece existir. (...) Realidade é o campo de estudos urbanos. Aspiração é o de projeto urbano".