Urbanismo Social: cidadania que promove segurança

CASA VOGUE | 18 DE JANEIRO, 2019
22/01/2019
Compartilhar:

O Urbanismo Social

 

Cidades latino-americanas apresentam, há várias décadas, os maiores índices de violência do mundo[1], ocupando 42 das 50 primeiras posições do ranking global de cidades com as maiores taxas de homicídio de 2017. Pobreza, exclusão social e sucessivas crises econômicas restringem as oportunidades de educação e trabalho dos jovens moradores de bairros pobres. Em contrapartida, o tráfico de drogas e outras formas de crime organizado prosperam e empregam parte desses jovens, atraindo-os com a promessa de dinheiro e status. O crime organizado trouxe armas para as nossas cidades, tornando a violência especialmente letal, e os governos não têm tido sucesso em combater essa violência apenas com ações policiais e encarceramento.

 

Para José Marcelo Zacchi, que esteve à frente da iniciativa UPP Social, no Rio de Janeiro, boas instituições policiais, judiciais e penitenciárias são imprescindíveis para combater o crime, mas não bastam. Assim como a saúde pública avançou ao trabalhar a prevenção, e não apenas o tratamento de doenças, as políticas públicas de segurança das cidades latino-americanas se mostraram bem-sucedidas quando foram além de apenas responder a crimes e passaram a  incorporar o objetivo de promover ativamente a segurança, agindo sobre as causas da criminalidade e da violência. A Colômbia, a partir dos anos 1990, tornou-se uma referência internacional nessa abordagem ao desenvolver o urbanismo social, articulação de políticas urbanas que visam levar aos bairros em que há mais violência os mesmos serviços e equipamentos públicos que existem nas áreas mais seguras da cidade.

 

Para divulgar exemplos de políticas bem-sucedidas de promoção de segurança urbana, o Arq.Futuro realizou, em novembro de 2018, o seminário Urbanismo e Segurança Pública, trazendo três casos importantes de promoção da paz por meio da qualificação dos espaços e serviços públicos em bairros atingidos pela violência: o novo pacto social de Medellín, na Colômbia; a experiência da UPP Social, vinculada às Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro; e os Compaz – Centros Comunitários da Paz – de Recife. A seguir, apresentaremos brevemente cada um dos casos.

 

Teleféricos foram instalados como parte da rede de transporte público de Medellín (Colômbia) e ajudam a integrar os bairros mais pobres ao restante da cidade

 

Medellín: referência em Urbanismo Social

 

Medellín, na Colômbia, é uma cidade que, nos anos 1990, chegou a apresentar os mais altos índices de homicídio do mundo, atingindo o ápice de 380 homicídios por 100 mil habitantes no ano de 1991 (para a ONU, valores acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes já representam níveis epidêmicos de violência letal). Os números de Medellín eram altos em razão da disseminação de armas de fogo na sociedade e exacerbados pelo conflito armado entre facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas. O sucesso da Colômbia e, especialmente, de Medellín em reduzir esses índices é um caso excepcional: hoje, a taxa de homicídios de Medellín caiu para 20 por 100 mil.

 

A primeira frente de ações para reverter esse quadro foi essencialmente policial e militar, com o enfrentamento dos grupos armados por forças regionais e nacionais. Contudo, o que garantiu a perenidade da queda dos índices de violência de Medellín foi um conjunto de políticas públicas pensadas para reduzir as desigualdades sociais intraurbanas e garantir que os moradores dos bairros pobres tivessem acesso aos serviços públicos oferecidos nos bairros de classe média – o urbanismo  social, iniciativa que consiste em identificar e sanar as lacunas deixadas pelo Estado, priorizando os aspectos que mais têm impacto sobre a segurança.

 

Em bairros similares aos morros cariocas, escadas rolantes públicas foram construídas como parte do sistema de transportes de Medellín, combatendo a segregação urbana

 

O território da cidade de Medellín está configurado em uma zona central, mais plana e rica, rodeada de bairros periféricos construídos em terrenos montanhosos, onde vive a população mais pobre. Tais bairros, assim como muitas comunidades e favelas brasileiras, foram loteados e construídos sem a observação das regras de planejamento urbano, resultando em falta de espaços públicos, vias inadequadas para a circulação e ausência das redes oficiais de água, energia e coleta de esgoto. Assim, as políticas de urbanismo social de Medellín envolveram muito investimento em promover a integração de tais bairros com o restante da cidade pela expansão da rede pública de transportes e implantação de soluções de mobilidade específicas para aquela topografia, como os teleféricos e as escadas rolantes.

 

Conforme tais obras eram realizadas, os planejadores tomaram o cuidado de criar bons espaços públicos nesses bairros, qualificar o sistema viário existente e implantar equipamentos públicos que estivessem faltando, tais como escolas e postos de saúde. Tiveram destaque as bibliotecas-parques, construções e espaços feitos para abrigar atividades e serviços diversos, especialmente de educação, cultura e convivência. A destacada qualidade arquitetônica das construções e a recuperação dos espaços urbanos de seu entorno, assim como a criação de excelentes parques, comunicam de forma clara a intenção de reverter as grandes disparidades existentes entre os investimentos feitos até então nos bairros ricos e nos bairros pobres. Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura Cidadã e de Desenvolvimento Social de Medellín,  afirmou que sua intervenção sobre o cenário de violência de Medellín “se deu com 90% de ações culturais”,  que só foram possíveis porque o município aumentou seus investimentos em cultura e em educação, respectivamente, de 0,6% para 5% e de 12% para 40% do orçamento.

 

 

Biblioteca-parque em Medellín: bairros periféricos recebem equipamentos públicos de excelente qualidade associados à recuperação dos espaços públicos

 

Rio de Janeiro: UPP Social

 

Em 2009, o governo estadual do Rio de Janeiro criou as Unidades de Polícia Pacificadora  (UPPs) como um programa de segurança pública que tinha por objetivo expulsar o crime organizado de certos setores da cidade que até então controlava. A implantação de cada UPP foi precedida de grandes ações policiais, varreduras para localizar estoques de armamento e munição e prisões de líderes das facções e milícias. As UPPs contavam com quartéis em localizações estratégicas das comunidades e muito policiamento ostensivo. A determinação que o governo demonstrou à época transmitiu à população em geral a mensagem de que aquela política seria posta em vigor apesar de qualquer dificuldade, e que as forças policiais estavam dispostas e preparadas para o confronto armado, se necessário. Ao comunicar e demonstrar essa determinação política, o governo conseguiu promover a pacificação de muitos territórios com sucesso e, em vários casos, com um mínimo de confronto armado, pois os grupos criminosos preferiram se retirar a enfrentar a ocupação.

 

No final de 2010, foi criado o programa UPP Social, a partir do entendimento de que, para que a pacificação fosse mesmo permanente, as condições que levaram à violência e ao crime precisavam ser combatidas – condições como a pobreza, exclusão social, falta de emprego, e deficiência de serviços e infraestruturas públicas. As UPPs continuavam a ser implantadas, com mais e mais bairros pacificados, e as políticas de UPP Social, ainda que incipientes, contribuíam para transformar a percepção da população sobre o Estado, cuja presença por muito tempo limitava-se às incursões policiais, percebidas como violentas e injustas. Por meio da UPP Social, a prefeitura mapeou as necessidades dos moradores desses bairros, elencou-as em termos de urgência e passou a construir as infraestruturas e a oferecer os serviços públicos de que a população de cada bairro pacificado necessitava. Foi identificado, por exemplo, que a coleta de lixo era muito limitada em razão da dificuldade de trafegar nas estreitas vielas com os caminhões convencionais; a solução, inspirada na mobilidade dos moradores daqueles bairros, foi o emprego de motocicletas adaptadas para esse fim.

 

Em comunidade carioca, com ruas demasiado estreitas para caminhões, a coleta de

resíduos porta a porta passou a ser feita com motocicleta adaptada. Fonte: Facebook

 

Também considerando o aspecto simbólico de criar pontos de referência dos serviços públicos nos bairros pacificados, foram criadas as Praças do Conhecimento, inspiradas nas bibliotecas-parques de Medellín, para melhorar a oferta de serviços públicos e atividades culturais e de lazer para todas as faixas etárias. Contudo, infelizmente, a experiência positiva das UPPs e da UPP Social acabou interrompida após os Jogos Olímpicos de 2016, quando a crise fiscal do estado do Rio de Janeiro provocou a falência generalizada na prestação de serviços públicos e quando os escândalos de desvios de dinheiro público por parte de ex-governadores geraram um clima de descrença no Estado. Desde então, é visível o retrocesso que houve nesses bairros, onde o crime organizado voltou a exercer controle armado do território e os serviços públicos, mais uma vez, se ausentam. 

 

Praça do Conhecimento em UPP carioca. Fonte: Facebook

 

O retrocesso das UPPs é, de certa maneira, a comprovação da teoria que embasa o urbanismo social: policiamento e encarceramento não bastam para promover a segurança, pois é necessário agir sobre os fatores que geram a violência. Para que a pacificação seja permanente, é preciso investir na superação das desigualdades que existem entre bairros ricos e pobres da cidade, de forma que a população das comunidades escape do ciclo de exclusão e pobreza que tem se perpetuado geração após geração.

 

Recife: os Compaz

 

Também inspirados pelas bibliotecas-parques de Medellín, desde 2016 foram criados em Recife dois Centros Comunitários da Paz (Compaz), prédios públicos construídos para abrigar atividades e serviços diversos: esportes, cultura, saúde e promoção de cidadania. Suas bibliotecas contam com subseções e atividades diversas, de forma a atrair também crianças, jovens e adultos que não sintam afinidade com o ambiente tradicional de bibliotecas e escolas.

 

Recreação na área externa de um Compaz. Fonte: Facebook

 

As duas unidades do Compaz estão localizadas em bairros pobres e vulneráveis à violência. São espaços saudáveis de socialização e estreitamento de laços, com apelo especial para jovens. A boa qualidade dos prédios – que têm até piscinas, muito demandadas – e dos serviços contribui para reconstruir na população a confiança no Poder Público, que para muitos estava associado apenas a serviços insatisfatórios e incursões policiais violentas. “As melhores praças, parques, sempre estavam na zona mais rica da cidade, enquanto nas periferias, nos lugares que as crianças tinham para brincar, elas conviviam com ratos e baratas”, diz o secretário de Segurança Urbana de Recife, Murilo Cavalcanti. Essa é a desigualdade que os Compaz têm transformado.

 

Em comparação com o programa UPP Social e o urbanismo social de Medellín, os Compaz ainda são uma iniciativa pequena, mas os resultados obtidos em termos de engajamento da população, inclusão social e promoção da autoestima dos jovens são visíveis nos bairros. Além disso, enquanto a taxa de homicídios de Recife cresceu 20% em 2017, os seis bairros atendidos pela unidade mais antiga do Compaz viram queda de 20% na mesma taxa, o que pode indicar efeitos do programa. Trata-se de um caso interessante e que, seguramente, merece ser acompanhado.

 

Práticas esportivas na área externa de um Compaz. Fonte: Facebook

 

Cidades brasileiras e seu futuro

 

Entre as 50 cidades mais violentas do mundo de 2017 figuram 17 cidades brasileiras, com as mais altas taxas homicídio encontradas em Natal (102 por 100 mil habitantes), Fortaleza (83), Belém (71), Vitória da Conquista (70) e Maceió (64).

 

Segundo José Marcelo Zacchi, ao desenvolver políticas públicas de segurança em bairros onde há conflitos armados e mortes violentas, “o objetivo não pode ser cidade pacificada, tem de ser cidade integrada. E, no longo prazo, se não for integrada, pacificada não será”. A pacificação é a garantia de integridade física da população e de seu direito de ir e vir; após a pacificação de um bairro, no entanto, é necessário levar a ele a mesma qualidade de serviços e infraestruturas públicas que existe no resto da cidade, o mesmo acesso a educação, saúde, transporte, empregos e moradia digna. É preciso que o Estado trate das carências que levaram ao surgimento da violência – exclusão social, desemprego, precariedade da educação formal. Sem isso, não é possível ter pacificação duradoura.

 

Jovens em um Compaz. Fonte: Facebook

 

Atividade com jovens na área coberta de um Compaz. Fonte: Facebook