Lugar como recurso

24/07/2017
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Por ocasião do seminário Avenida Paulista: Novos Projetos, Novos Rumos, o Arq.Futuro convidou alguns autores para escreverem sobre as mudanças nos usos dos centros históricos e eixos culturais das cidades brasileiras. Neste artigo, Washington Fajardo trata das transformações nos usos do patrimônio histórico e arquitetônico do Rio de Janeiro.

 

Nenhuma outra grande cidade brasileira fez o movimento que o Rio fez nos últimos anos de voltar ao seu lugar de origem, o Centro Histórico às margens da Baía de Guanabara, colocando a região portuária como novo espaço de desejo urbano. A infraestrutura foi remodelada, com VLT, novos e melhores espaços públicos, novos museus e atrações, redução da área dedicada a veículos privados, eliminação da monstruosidade da perimetral (que muitos arquitetos chegaram a defender) e reabilitação e ressignificação de inúmeros bens culturais, de arquiteturas a manifestações tradicionais, dentre as quais destaca-se o Cais do Valongo, que acaba de ser inscrito na lista de Patrimônio da Humanidade da UNESCO.

 

Evidentemente há ainda muitos passos a percorrer, como o necessário incremento da ocupação residencial da área. Mas há um desafio que não é tão evidente, por ser difuso, por ser mimético à paisagem urbana, que é a governança do espaço público e a necessária construção da sua sustentabilidade institucional. Até mesmo novas qualidades físicas não resistem muito tempo à desordem urbana e ao descaso com o espaço público.

 

Infelizmente dá-se pouca importância à regulação e controle do espaço comum nas cidades brasileiras.

 

Isso se deve a alguns fatores.

 

Confundimos a presença de autoridade no espaço público como cerceamento da liberdade. Em uma sociedade marcada pela ditadura e pela perda dos direitos individuais, qualquer sinal de regramento no modo como usamos as ruas, as praças, já é entendido como ataque frontal à liberdade. Por outro lado, as autoridades não são humanizadas nas suas metodologias. São raras as práticas de policiamento comunitário ou de compromisso com o cidadão. Isso transforma o território comum em palco de conflitos e não um meio a ser compartilhado por todos. Os prejuízos são infindáveis. Para além da dimensão econômica, perde-se muito politicamente, pois o espaço urbano comum é alimento essencial para a construção da esfera pública.

 

A instabilidade histórica da economia brasileira, gerando ciclos muito bipolares de euforia e depressão, levou a estabelecer no senso comum um subterfúgio de que o trabalho no espaço público, os ambulantes, os camelôs, são modos de “se virar” diante da falta de empregos ou oportunidades. Isso cria grandes descontroles e populismo com os trabalhadores, pois na pretensa promessa de um “bico”, um trabalho, tanto se estimula a informalidade quanto se desarticulam negócios que seriam capazes de gerar tributos e, por consequência, serviços públicos, que viriam a atender a mesma camada social que busca trabalho. Se é legitima tal busca e se, sim, o trabalho na rua pode vir a ser sustento, mas não obriga os governos a pensar políticas de acesso ao trabalho ou metodologias de desenvolvimento de capacidade empreendedora, e acabam se tornando sócios de vendedores de produtos industrializados, sem nota fiscal, ato ilegal que ocorre a plena luz do dia.

 

Mas talvez o ponto mais crítico seja a latência do pensamento moderno, ainda corrente nas escolas de arquitetura e protegido e difundido pelos escritórios de arquitetura e pelo sistema da crítica e das publicações. Nesse sentido, convertem-se em aliados estéticos do mercado imobiliário na busca por terras urbanas baratas, promovendo a eterna expansão urbana. A dissolução do espaço público é, portanto, parte intrínseca da atitude de não revisão do ideário moderno e da cegueira para perda de sustentabilidade da cidade existente. O elogio do objeto arquitetônico ilhado, que não promove rua, que não se insere na forma da quadra, que é um capricho plástico em busca de reconhecimento, mas que condena as cidades, especialmente seus lugares centrais ou singulares, a ciclos de Sísifo, em que tudo que é construído é na verdade ruína projetada. Fazer o embate da estética moderna e sua contínua repetição é urgente. É necessário que as cidades busquem pela legislação a manutenção das suas formas históricas e seus contextos de memória.

 

Reconhecer nas calçadas uma infraestrutura de cidadania poderosa; pelo uso coletivo da cidade por todos e para todos, sem donos, sem privilégios, todos sujeitos à lei, como modo de edificar política; e pela possibilidade da legibilidade do espaço público e da paisagem urbana como uma inserção cognitiva do indivíduo na complexidade do território metrópole, são modos poucos tratados, pouco falados e em que há uma lacuna enorme de ação pública e de governança dedicada.

 

Não à toa, observa-se cada vez com mais frequência, a sociedade civil por ações chamadas “táticas" vir à cena e projetar ela própria, sem a colaboração do designer erudito, soluções que tratem da abandonada escala do cotidiano.

 

No Rio de Janeiro, por dois anos, em colaboração com a Bloomberg Associates, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, órgão de tutela do patrimônio cultural da prefeitura do Rio, conduziu um programa chamado Centro Para Todos, que tinha por objetivo qualificar os serviços públicos, tanto coordenando-os como conferindo às diferentes agências públicas um olhar sensível para a urbanidade e a micro escala, sempre negligenciada na opressão da cidade modernista.

 

O programa dividiu o Centro Histórico em nove áreas, e cada uma era observada holisticamente por meio de caminhadas coletivas, todo inicio de mês, transmitidas por Facebook Live. Ao longo de trinta dias, os serviços necessários eram então executados, e passava-se para a próxima área. Essa metodologia de rodízio por microterritórios tinha caráter de ser eficiente no início, e pelo retorno posterior a área depois, ser eficaz, isto é, resolver problemas que podiam ser resolvidos no momento inicial e depois ir consolidando em definitivo problemas maiores. Com esse saltos incrementais tanto se aprendia pela ação empírica quanto se permitia planejar e projetar melhor e mais. Priorizava-se a acessibilidade, a andabilidade (“walkability”), a legibilidade e a beleza da paisagem, tanto reparando calçadas como coibindo letreiros irregulares, melhorando a iluminação pública, limpando fachadas, homogeneizando mobiliário urbano, fazendo replantios, planejando melhor a localização de ambulantes regulares e removendo os irregulares.

 

O primeiro ciclo de nove meses (nove áreas, uma por um mês) deu-se sem participação popular pois a própria equipe técnica precisava se conhecer e criar rotinas. Mesmo assim, por meio do aplicativo WhatsApp e seus grupos de conversa, lideranças comunitárias faziam reclamações e pleitos. Esse canal possibilitou uma grande qualidade para os serviços e a escuta ativa. A partir do segundo ciclo de trabalho, passaram a tomar parte mais indivíduos, além de grupos de moradores organizados – que, no caso do Centro do Rio, ainda são poucos; também envolveram-se representantes de espaços culturais, bares e restaurantes, e hotéis.

 

Isso possibilitou estruturar territórios culturais e promover integração entre vizinhos que não se relacionavam, e qualificou mais ainda os serviços públicos.

 

O programa Centro Para Todos também acelerou o processo de licenciamentos no Centro Histórico do Rio, reduzindo de 58 para 10 dias o prazo de licenças pela simples promoção de reuniões técnicas semanais de análise de processos. Além disso, iniciou o mapeamento de vazios urbanos para consolidar a base de dados de imóveis ociosos.

 

A nova administração municipal não deu a mesma ênfase ao programa, mas é importante notar que é uma das raras ações que foram mantidas. Infelizmente a atual prefeitura tem visão populista para a questão dos ambulantes, e o que se observa no Rio de Janeiro inteiro é um incremento exponencial da desordem no espaço público, com grande aumento no número de vendedores de rua. A sensação de insegurança passa a ser pior também.

 

Portanto, o que se conclui é que a governança do espaço público é ainda entendida como um "não problema” e seu atributo espacial fundamental, de ser a espinha dorsal da qualidade urbana, não é alcançado, havendo muito mais dedicação pública e privada ao ato de construir, edificar e expandir a cidade do que a manter e conservar a cidade que já existe.

 

Os lugares da cidade, o espaço vazio que deveríamos compartilhar, são desterritorializados e desvocacionados dos seus atributos culturais e de memória coletiva, legando ao futuro a urgência de equacionar os problemas das bordas urbanas assim como dos espaços centrais. Daí as forçosas agendas de “re" qualificar ou vitalizar, quando bastaria preservar e promover.

 

O custo de tais processos é alto e coletivo, e esses lugares que são recursos, preparados pelo passado, não realizam seu destino original de fazer cidade e cidadania.