Investimento com impacto social: como integrar cidades partidas

03/03/2016
Compartilhar:

Alguns estados modernos consagram o direito à igualdade entre os cidadãos, mas nenhuma legislação garante o direito à não indiferença. Isso porque não ser indiferente ao próximo é algo que não se cria nem se demanda pela lei: apenas existe na prática de uma convivência cidadã, responsável e atenta à realidade que às vezes parece ficção. Numa cena da novela “Avenida Brasil”, do capítulo exibido em 20 de setembro de 2012, a personagem Lucinda, a “Mãe do Lixão” (Vera Holtz), conclui assim a sua conversa com Tufão (Murilo Benício): “Só posso dizer que o lixo tem suas leis. Eu espero que o senhor e a verdade se encontrem. Vai ser um encontro doloroso. Mas, necessário. Eu lhe desejo boa sorte”.

Também desejamos sorte ao leitor para que entenda o motivo dessa citação. Proponho analisar as frases da sentença de Lucinda, começando pela mais reveladora: “O lixo tem suas leis.” Não vamos analisar o contexto no qual Tufão buscava resgatar o passado de algumas personagens do enredo, nem queremos chamar de “lixo” o atual caos urbanístico que encontramos na cidade do Rio de Janeiro, em pleno século XXI e após 450 anos de seu “descobrimento”. O acerto dessa afirmação está no fato de que até o lixo tem suas leis.

A ocupação desordenada do solo urbano no século XX, principalmente a partir dos anos 50, ocasionou o surgimento de extensas áreas marginalizadas, renegadas pela maior parte das instituições, recebendo diversos nomes ao longo do tempo: “favela” o mais comum e “assentamentos urbanos não regularizados”, o mais descritivo em termos legais. Durante décadas, o Poder Público abdicou do controle territorial dessas “ilhas”, que se tornaram sub-bairros e depois quase-cidades. Seria natural, portanto, que esse vácuo de poder fosse preenchido pelo chamado “poder paralelo”, ou “poder marginal”, que impôs suas próprias “leis” e “tribunais” paralelos. Leis Penais e Leis Civis, diga-se.

Praticamente toda favela tem regras paralelas ao direito escrito, específicas em cada comunidade. Notamos que a retomada desses territórios para reintegrá-los à República Federativa do Brasil faz parte da agenda política de alguns governantes. Um passo importante e definitivo foi dado nessa direção com a ocupação policial e a pacificação de áreas até então controladas pelo “poder paralelo”. O respeito à integridade física dos moradores veio aumentando e, ao menos nas “áreas pacificadas”, foi resgatada a esperança do monopólio do Estado em atividade ostensivamente armada.

Resta ainda não descoberto e bem analisado o outro lado da moeda -- como assegurar a segurança jurídica dos moradores após a pacificação? “Espero que o senhor e a verdade se encontrem. Vai ser um encontro doloroso. Mas, necessário.”

Esperamos que a sociedade tenha um encontro com a verdade. Em favelas, assentamentos irregulares ou áreas pacificadas tem-se a prática paralela de “convenções contratuais informais”, diferentes daquelas previstas na Constituição, no Código Civil ou na Legislação sobre Registros Públicos. Não significa que esses contratos sejam necessariamente injustos, ilegais ou ilegítimos; podem serapenas diferentes do formato previsto na “lei formal”.

A prática pode variar em cada comunidade e vai desde a transferência da “posse-quase-propriedade”, em transações de papel passado na Associação de Moradores, que exerce função equivalente aos registradores imobiliários da cidade, até o contrato de aluguel que não permite despejo, quando o morador encontra-se desempregado. A Verdade é que o Direito Civil ensinado nas faculdades não é praticado em grande parte do território nacional.

A OCUPAÇÃO LEGITIMADA

Estima-se que no Rio existam mais de 1 milhão de pessoas morando irregularmente. O encontro com a verdade vai ser doloroso por esse e vários outros motivos.

Primeiro lugar, precisamos reconhecer nossa parcela de omissão. Sem dúvida, essa questão urbana começou há gerações, mas, aos olhos do mundo, é um problema atual — um problema atual e nosso. A degradação urbana no país contribui para o caos social e a insegurança coletiva, exigindo uma intervenção decisiva à altura de problemas já históricos.

Em segundo, é preciso fazer algo, pois a República não irá sobreviver à tanta indiferença. Assistimos incrédulos a revelação de facínoras e psicopatas na ficção da novela e na realidade do noticiário, e fazemos o que? E todo dia quando testemunhamos as “ilhas de direito paralelo”, que são as favelas? Acreditamos sinceramente na convivência harmônica de dois sistemas jurídicos diferentes ou somos apenas bastante desatentos com a realidade que nos cerca? As fronteiras da cidade formal (Civil Law) com a “não cidade” favela (Common Law).

Em terceiro, para fazer algo verdadeiramente transformador, será preciso superar preconceitos. Graves omissões no planejamento e na execução de políticas públicas no passado não devem contaminar nosso julgamento atual, muito menos servir como justificativa para que sigamos ignorando o problema. Devemos analisar profundamente essas “construções irregulares” e esses “contratos informais”, pois são de extremo interesse, sociológico, urbanístico, jurídico e também cultural. A governança de uma região é sempre multidisciplinar.

Como disse Lucinda, o encontro com a verdade é necessário e a ‘Cidade Partida’ se desencontra em diversas dimensões: social, econômica, ambiental, jurídica. Em termos legais, a fragmentação do solo urbano é claramente representada pela ausência de registro no cartório de imóveis da maioria das áreas ocupadas.

Enquanto na cidade a regra é a “regularidade urbana”, a propriedade do solo e edificações, com indicação formal de lotes e proprietários, na favela a regra é a “irregularidade fundiária”, a ausência de reconhecimento oficial de qualquer propriedade ou, mesmo, a indicação, no registro de imóveis, de proprietários. Pouco ou nada se fez no século XX para preservar e resgatar para os cidadãos “do morro” e “do asfalto”, nas metrópoles, os valores republicanos da vida sob a Constituição Cidadã de Ulysses.

Durante décadas o caos urbano consolidou-se e a ocupação, outrora irregular e precária nas favelas, virou moradia definitiva. Legitimou-se. Hoje se discute a forma do título que deve ser atribuído aos moradores dessas áreas. Isso pouco tem a ver com a dicotomia batida e muitas vezes deturpada entre “rico x pobre”, “centro x periferia” “zona nobre x subúrbio”, “nos x eles”. É perfeitamente possível encontrar “não pobres” morando em favelas ou áreas pacificadas, assim como encontrar bandidos altamente perigosos em condomínios de luxo.

A visão de que a favela é, necessariamente, um lugar “degradado” e “insalubre” tornou-se míope sob muitos aspectos, estigmatizando a favela como um lugar sem futuro; só que a favela parece o futuro das cidades, pois cada vez mais assistimos a favelização e nos deixamos favelizar, nossas cidades, nossas leis, nossas praças e nossa governança pública.

É claro que as condições de habitabilidade não são perfeitas e que há muito a fazer nas favelas, mas o ponto é que o desejo do “urbano redivivo e republicano” não passa mais pela política de remoção em massa, com movimentações impostas aos habitantes. A ideia de um grande plano de remoção dos “assentados irregulares” já não faz parte do pensamento moderno e pragmático. É devido ajudar a fazer emergir para todos a dignidade dos moradores das favelas.

RECONCILIANDO DIREITOS E DEVERES

Faltam recursos ao Estado e sobram direitos para os moradores permanecerem onde estão nas favelas. É claro que todos estarão sujeitos à desapropriação, mas apenas em intervenções justificadas e necessárias no plano ambiental e urbanístico. Faz parte da solução dessa equação o tratamento mais óbvio possível, que tem como premissa a necessidade de reconciliar o rol de direitos e deveres dos dois “tipos” de cidadão, o “da cidade” e o “da favela”. Não queremos com este artigo esgotar o tema, que é vasto, complexo e dinâmico. Pretendemos fazer uma provocação participativa e lançar o desafio de se envolver, repensar e agir na solução de problemas que não podem ser resolvidos individualmente, sem auxílio ou parceria com o poder público.

Qual o dia seguinte do Direito Civil nos territórios que até recentemente eram controlados pelo poder marginal, paralelo? Quem será legitimado como dono do pedaço? Até quando as favelas, assentamentos irregulares e áreas pacificadas não serão chamados de bairro? Que indicadores servirão para comprovar que as áreas pacificadas foram integradas, de fato e de direito, à cidade? Quais os obstáculos e impedimentos para que isso aconteça?

Essas perguntas demandam respostas de envergadura e complexidade, como transporte público, revitalização de espaços comuns, construção de habitações, saneamento e educação. Mas, comecemos a lista pela mais “jurídica” das providências, contida no ideal de Justiça desde sempre, que é “dar a cada um o que é seu”. Ou seja, efetivar a regularização fundiária em todas as terras ocupadas que podem ser tituladas, especialmente as que não estiverem em áreas de risco ou de preservação ambiental.

Regularização fundiária é um processo complexo e sempre precisamos ter em vista no Brasil a diferença entre posse e propriedade. Entendo que todo o cidadão tem o direito de ser proprietário de uma moradia digna, sagrada e inviolável. Independente de raça, cor, credo ou qualquer orientação política ou sexual, somente será reconhecido como proprietário aquele cidadão que tiver vinculada uma parcela de solo e uma edificação em seu nome conforme escritura registrada no cartório competente da cidade formal. Em todos os demais casos o principal elemento a ser considerado é a posse, que pode ser legítima ou não.

Como negar propriedade a moradores cujas casas foram construídas com as próprias mãos, muitas vezes com o suor do trabalho de uma vida — às vezes o suor de gerações? A necessária (e tardia) busca pela regularização fundiária com título de propriedade – ou de posse legítima – é política pública urgente e deve ser pauta prioritária de qualquer agenda republicana.

INSTRUMENTOS DE INTEGRAÇÃO URBANA

A seguir, alguns mecanismos econômicos que podem facilitar a árdua missão de harmonizar as leis da cidade à prática das comunidades, sem anular uma ou outra, buscando a verdadeira reconciliação entre os “vizinhos”.

Entendemos que é desejo de muitos cidadãos, especialmente os que moram nas grandes cidades e metrópoles, promover renovação em espaços públicos e privados. Por diversos motivos, esse anseio vem sendo objeto de legislações específicas, culminando na edição, em 2001, da lei federal que introduziu o Estatuto da Cidade.

Questões relacionadas à insegurança pública e à falta de mobilidade urbana têm colocado em risco a sobrevivência do espaço público, além de testar a paciência de seus usuários. Credores dos serviços municipais, estaduais e federais, diariamente os cidadãos empenham sua fé e cruzam os dedos buscando sobreviver na travessia da cidade, selva inóspita de concreto e aço.

Nesse contexto surgem novos mecanismos para o financiamento das chamadas “intervenções urbanas”, dentre os quais destacamos os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs).  São os únicos certificados de valor mobiliário cujo signo é o renascer urbanístico. Seu propósito está em servir como alternativa para captação de recursos pelos municípios com vistas a atingir finalidades preconizadas no Estatuto da Cidade, especialmente para a implantação ou melhoria de infraestrutura urbana por meio de investimentos em obras públicas com alta relevância social.

Para se ter ideia do alcance deste instrumento, basta mencionar que o maior projeto de revitalização em andamento no mundo foi financiado pela emissão de CEPACs e se chama “Porto Maravilha”, na Cidade do Rio de Janeiro. Com investimentos que superam, facilmente, a casa dos bilhões de reais, até o patrimônio cultural beneficiou-se diretamente desses recursos, de forma visionária destinados desde a origem para essa finalidade.

Há ainda outro mecanismo disponível aos investidores ainda não familiarizados com o investimento direto em CEPAC: os fundos de investimento imobiliário (FII), também utilizados na revitalização da região do porto. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) permite que estes fundos apliquem recursos em CEPACs como forma de participação em revitalizações  imobiliárias. Assim, os FIIs constituem uma comunhão de recursos captados no mercado de valores mobiliários e destinados à aplicação em projetos envolvendo imóveis comunitários, comerciais, residenciais, rurais ou urbanos, construídos ou em fase de construção, para posterior alienação, locação, arrendamento, gestão condominial, dentre outros.

As características dos fundos de investimento imobiliário, notadamente a administração profissional de seu patrimônio e a existência de mercado secundário ativo para a negociação das cotas, tornam o envolvimento dos FIIs nas emissões de CEPAC uma ferramenta vantajosa para a viabilização do investimento, além de poder adaptar-se para cada bairro ou comunidade, desde que comprometido com ouvir e dar voz de verdade à comunidade local. Apenas assim será dada efetividade ao direito da população à cidade, de participar e definir ou influenciar as decisões que afetam os mesmos diretamente.

Conjugar a versatilidade dos fundos de investimento com a robustez da governança proporcionada pela utilização dos CEPACs é, talvez, uma maneira eficiente para alavancar a revitalização de grandes áreas urbanas degradadas ou pouco valorizadas, o que se coaduna com um movimento que ganhou força nos últimos anos: alinhar negócios e finalidade social. Algo entre a filantropia e a atividade empresarial senso estrito, o chamado ‘lucro do bem’ ou investimento de impacto social.

O INVESTIMENTO DO BEM E A URBE

Já não é raro encontrar demanda no mercado para o “investimento do bem”: obter o retorno financeiro e contribuir socialmente, ao mesmo tempo. E, na busca de provocar impactos sociais relevantes por meio dos mercados financeiros e de capitais, por que não fomentar a figura do fundo de investimento imobiliário com interesse social?

Pode-se dizer que o primeiro normativo editado pela CVM com um viés social foi a Instrução 399, de 21 de novembro de 2003, regulamentando a constituição e o funcionamento de fundos de investimento em direitos creditórios no âmbito do Programa de Incentivo à Implementação de Projetos de Interesse Social — FIDC-PIPS (PIPS).

Tal como previsto na legislação, ele é voltado à implementação de projetos nas áreas de desenvolvimento urbano, em infraestrutura, saneamento básico, energia elétrica, gás, telecomunicações, rodovias, sistemas de irrigação e drenagem, portos e serviços de transporte em geral, habitação, comércio e serviços.

É certo que o investidor social já dispõe dos fundos de investimento imobiliário para aplicar recursos em negócios sociais. Considerando que os investimentos precisam ser direcionados a empreendimentos imobiliários, a regularização fundiária promovida nas favelas abre uma nova fronteira de oportunidades para captação de recursos destinados a atender áreas de habitação e infraestrutura, com todo respeito à cultura local desenvolvida na comunidade, que poderá alcançar um novo patamar de desenvolvimento, autodeterminação e empoderamento.

A adoção desses instrumentos viabiliza a mobilização de uma classe de investidores que busca projetos sustentáveis com envolvimento de moradores engajados em torno de processos que assegurem uma governança cidadã.

A integração universal e definitiva de nossas cidades pode seguir o exemplo do “Parque Sitiê” na comunidade do Vidigal no Rio de Janeiro, cujos moradores fizeram surgir um local encantado no que era um lixão degradante. A promoção desse bem social coletivo e a revitalização urbana e ecológica daquela área merecerá na história uma medalha de ouro olímpico. Sem CEPAC e sem Fundo de Investimento, a realidade do local desafia qualquer ficção e inspira a Cidade Olímpica, outrora ‘Maravilhosa e Partida’, a ser unida e verdadeira.

E quais serão as cenas dos próximos capítulos? Desejo boa sorte e misericórdia para todas as mulheres e homens de bem.