Miguel Icassatti | Uma arqueologia da culinária paulistana

Descoberta de uma fôrma de bolo mameluca desengata um passeio pelas origens dos primeiros restaurantes de SP
17/09/2015
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Entre 2010 e 2013, uma equipe de arqueólogos coletou, num terreno entre as ruas Butantã, Paes Leme e Amaro Cavalheiro, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, 50 mil fragmentos de cerâmica do século 17. Em meio a eles estavam restos de oito fornos do que teria sido uma antiga olaria e de diversos utensílios domésticos, como potes e vasos.

Uma dessas peças, em especial, chamou minha atenção, quando soube da descoberta: trata-se de uma fôrma de bolo originária de 1650, a mais antiga que se tem registro no país. No que sobrou dela – alguns pedaços da lateral, da base e da parte central que, colados, nos dão uma boa ideia de como seriam seu desenho e tamanho originais – pode-se notar um fino traço decorativo, em ziguezague, que remonta à África e faz dela uma peça de cerâmica mameluca, de acordo com os especialistas que a primeiro descreveram.

A definição "mameluca" dada à fôrma caberia também àquele pedaço de São Paulo no século 17, então uma vila já habitada, segundo nos contam os livros de história, por algumas gerações de miscigenados. Da margem do Rio Pinheiros, cujo curso era sinuoso como uma cobra em movimento, até o ponto onde hoje está o Largo da Batata, tudo era várzea, portanto, um terreno com muito barro propício à cerâmica.

E assim a região permaneceu, pelo menos, até meados da década de 1950, conforme me contou certa vez o saudoso Narciso Moreno, proprietário do Bar das Batidas (até hoje mais conhecido como "Cu do Padre"), aberto em 1957 na esquina do Largo de Pinheiros com a Rua Padre Carvalho. Disse-me ele que nos primeiros anos de seu estabelecimento chegou a servir doses de cachaça a fregueses que chegavam a cavalo, tangendo gado, vindos da Estrada da Boiada, o caminho que ligava São Paulo à região de Sorocaba.

O fato é que um século após a fundação de São Paulo, havia gente vivendo em Pinheiros e a descoberta da fôrma de bolo mameluca nos leva à dúvida: o que esses mamelucos comiam? A resposta, por certo, revela um cardápio baseado em peixes pescados no próprio rio; frutos, legumes e folhas nativos da Mata Atlântica; pequenos lagartos e roedores, tais quais ratos e capivaras, caçados ali mesmo.

"O europeu ficou deslumbrado com essa diversidade da culinária indígena", disse-me Sênia Bastos, professora do mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo. De fato, no brilhante livro A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900 (Editora Objetiva, 2012), o jornalista Roberto Pompeu de Toledo compartilha um trecho dos Tratados da terra e gente do Brasil, relato do padre português Fernão Cardim, acerca da qualidade e da variedade de ratos disponíveis para o repasto: "Todos se comem, e são gostosos".  

A professora Sênia Bastos observa que, diferentemente do que ocorria no restante do país, a cultura do milho não era onipresente em São Paulo. Aqui se plantava mandioca e trigo, além de feijão, que certamente seriam as matérias-primas das receitas preparadas na nossa querida fôrma de bolo recém-descoberta.

A mandioca, aliás, era o ingrediente-base da chamada farinha de guerra, "uma pasta de mandioca cozida que, enrolada em folhas, podia durar muito, e por isso era levada no bornéu dos integrantes das entradas, para servi-los no sertão", segundo a descrição de Roberto Pompeu de Toledo. O autor também assegura que em São Paulo criavam-se vacas, galinhas e ovelhas. 

Distante do bairro de Pinheiros, espremido entre os rios Tietê e Tamanduateí, e muito mais próximo do núcleo urbano constituído em torno do Pátio do Colégio, o bairro do Pari já existia em fins do século 16. Pari, aliás, era uma espécie de armadilha de pesca, construída com cipó e em formato de cerca, que era estendida de uma margem a outra do rio para fisgar os peixes. Nesse núcleo, que até os anos 1980, pelo menos, sofreu com alagamentos decorrentes, sobretudo das cheias do Rio Tietê, viviam índios, portugueses e seus primeiros descendentes mamelucos, cuja subsistência derivava certamente da pesca.

É preciso lembrar que, ao menos até meados do século 18, o que hoje se entende por São Paulo era uma área circunscrita ao que ainda chamamos de centro velho da cidade. Esse perímetro era cercado por chácaras, fazendas e aldeamentos rurais nos quais antes viviam índios, e que agora esses nativos haviam perdido aos brancos.

São exemplos desses núcleos a tal área de Pinheiros, de São Miguel (na zona leste), o Sítio do Capão (área correspondente ao atual Jardim Anália Franco, na zona leste) e mais para a zona sul, o Ipiranga e o Itaim Bibi, onde resiste, em pleno 2015, a Casa do Itaim Bibi, uma construção bandeirista que pode ser vista por quem passa pela Avenida Brigadeiro Faria Lima – a casa fica no encontro das ruas Iguatemi e Joaquim Floriano e está literalmente coberta pelo edifício Pátio Malzoni.

Achados arqueológicos recolhidos nesses sítios nos permitem imaginar também os modos como os alimentos eram aquecidos. Usavam-se fogões segundo o modo indígena, ou seja, em fogueiras protegidas por três pedras dispostas lado a lado, e nos fogões de tucunduva, "em lugar das pedras, três casas abandonadas de cupim, cuja terra de que são feitas torna-se refratária (...), transformando-se em material perfeito para manter o fogo", nas palavras de Caloca Fernandes, autor de A culinária paulista tradicional nos hotéis Senac-São Paulo (Editora Senac São Paulo, 1998).

Agachado ou sentado no chão, o paulistano operava esses rudimentares equipamentos e preparava todo tipo de comida – sequer recorria ao apoio físico de mesas de madeira ou pedras que servissem como bancada, já que as casas não tinham móveis e as cozinhas, via de regra, ficavam do lado de fora.

Era um desses fogos de chão à moda paulistana que, possivelmente, se via no estabelecimento comercial de Marcos Lopes, tido como o proprietário do primeiro "restaurante" paulistano, inaugurado em 1599, exatos 45 anos depois da fundação de São Paulo de Piratininga. As aspas se justificam porque, na verdade, o negócio era uma espécie de pensão muito simples, que vendia pouso e refeição aos poucos forasteiros que subiam a Serra do Mar e chegavam ao vilarejo de ruas enlameadas e insalubres, ocupadas por casebres erguidos com taipa de pilão. O tal Marcos Lopes só teria concorrência em 1603, quando uma cigana abriu uma casa similar, segundo conta Pompeu de Toledo em A capital da solidão, que acrescenta: "E na década de 1630, há notícias de barbeiros que também vendiam comida e bebida".

Já no século 17, alguns hábitos portugueses herdados dos mouros, que ocuparam por quase 800 anos a Península Ibérica, passaram a conviver com a dieta indígena predominante. "O português fazia compotas porque o açúcar servia como conservante das frutas. Dessa forma, elas podiam ser armazenadas e consumidas fora de sua época", lembra-nos Sênia Bastos.

A jacuba – água fervente adoçada com rapadura e farinha de milho – era a primeira refeição do dia. E à medida que os tropeiros iam e vinham desbravando os sertões, a culinária se desenvolvia. Diz também Caloca Fernandes em relação ao que o tropeiro carregava no farnel durante suas viagens sertão adentro: "(...) estava sempre presente um virado, mistura de farinha de milho com galinha, ou feijão, ou milho, ou qualquer outra coisa que se tivesse à mão. Era tão comum que farnel passou a ser sinônimo de virado. Era levado embrulhado num guardanapo, onde a farinha e o frango guisado se misturaram, o molho de galinha penetrando na maciez da farinha, resultando em sabor num prato muito próximo ao cuscuz. Talvez seja este o verdadeiro ancestral do mais conhecido dos pratos paulistas".

É certo que até os fins do século 18 nenhum habitante de São Paulo saberia dizer o que era um restaurante, conforme o conhecemos hoje. Nem o habitante de qualquer cidade do mundo. Exceto, talvez, o de Paris, onde pela primeira vez se registrou um estabelecimento no qual uma pessoa poderia entrar exclusivamente para sentar-se à mesa, escolher algo para comer, pagar pela refeição e ir-se embora.

Segundo a pesquisadora inglesa Rebecca Spang, autora de A invenção do restaurante (Editora Record, 2003), esse conceito comercial surgiu na capital da França em 1766, quando Mathurin Roze de Chantoiseau inaugurou um ponto para vender sopas e cremes "restaurantes" servidos em xícaras para aqueles que quisessem recuperar-se de alguma enfermidade ou fadiga. E foi esse modelo francês de restaurante, já existente no Rio de Janeiro, sede da Corte, desde a década de 1830, que se desenvolveria tardiamente em São Paulo, não sem ressalva da população local de então. "Esses lugares não eram vistos com bons olhos pelos bem-nascidos. Eram tidos como parada de forasteiros e de prostitutas", explicou-me Sênia Bastos.

A inauguração da Academia de Direito, no Largo São Francisco, em 1828, e com ela o desembarque de jovens estudantes vindos de outras cidades, fez com que algo mudasse nesse cenário, ainda que de forma lenta. Em meados da década de 1840 há testemunhos da existência de um estabelecimento chamado Serêa Paulista, mantido pelo francês Charles Fischer, cuja especialidade era o bife a cavalo. A informação consta no artigo acadêmico O surgimento dos restaurantes na cidade de São Paulo: 1856-1869, publicado em 2008 por Siwla Helena Silva, professora do curso de Tecnologia em Gastronomia do Centro Universitário Senac em São Paulo.

É a partir desse período que se tem registro de propagandas em jornal, nas quais o anunciante promove seus serviços de alimentação. Um deles é o Hotel Paulistano, localizado na Rua São Bento, que divulga na página 4 do Correio Paulistano de 17 de fevereiro de 1855: "O proprietário deste estabelecimento faz saber ao público desta capital, que encontra-se no mesmo, a todas as horas muito boas comidas, e nas quartas-feiras e sábados haverá torta alacreme, pudim, pasteis de galinha e outros petiscos". Em 1862, segundo Siwla Helena Silva, foi inaugurado o Restaurante de Pariz, "o primeiro a mencionar um chef no estabelecimento".

Se na rua esse era o menu disponível, nas casas paulistanas, sobretudo nas do Brás e do Bixiga, o cheiro e o sabor que vinham das panelas sabia à Itália, da qual os imigrantes que vinham para trabalhar nas lavouras de café acabavam por ficar pela cidade. Já em 1870 tem-se notícia de uma fábrica de macarrão por aqui. "A grande contribuição que o italiano dá à alimentação da cidade é o consumo de algo que os portugueses não tinham como hábito comer: hortaliças e legumes", contou-me Sênia Bastos. Assim, o paulistano passou a conhecer ingredientes como a berinjela, a abobrinha e a alcachofra – sem contar a pasta, é claro.

Já na primeira metade do século 20 e posicionada como a maior cidade do país, São Paulo passaria a ser a nova casa de gente procedente de mais de 70 nacionalidades. A cultura e, consequentemente, a culinária do Leste Europeu, do Extremo Oriente e do Oriente Médio viriam se integrar de uma vez por todas com o cardápio luso-indígena.

Dessa época estão ainda na ativa, com as portas abertas aos foodies de hoje, lugares históricos como o Ponto Chic (desde 1922), a Castelões (aberta em 1924, é a pizzaria paulistana mais antiga em atividade), o Mercado Municipal (de 1933, e que merecerá um texto especialmente para este site), a Brasserie Victoria, no Itaim Bibi, e a Casa Santos, no Pari (ambos de 1947) e o mais longevo de todos, o Capuano, que desde 1907 opera no Bixiga, ininterruptamente.

É sempre um prazer voltar a esses lugares e sentir o sabor da pré-história gastronômica de São Paulo.

PS: O Sítio Morrinhos, que abriga o acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo (Rua Santo Anselmo, 102, Jardim São Bento), exibe a mostra permanente Escavando o passado: arqueologia na cidade de São Paulo. Ali estão expostos diversos achados arqueológicos, como louças, faianças, talheres, potes e garrafas, além de fotos e de uma réplica em 3D da fôrma de bolo descoberta no bairro de Pinheiros.