A cidade em que queremos viver, a sociedade que queremos ser

20/10/2017
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Publicado no primeiro semestre de 2017, o livro Prisioneiras, do médico Dráuzio Varella, mais que um relato sobre a realidade das mulheres do sistema carcerário, é um importante tratado sobre a atual ordem urbana do Brasil. A obra nos mostra como as cidades brasileiras excluem uma parte enorme da sua população, que mora em territórios onde a lei vigente não é a do Estado de Direito, mas sim a de facções criminosas.

 

O leitor se dá conta de como vive a maioria dos brasileiros e quão cotidianas são suas tragédias: adolescentes sem perspectiva de emprego, jovens grávidas abandonando a escola, mães que sustentam sozinhas e com dificuldade seus filhos, vidas interrompidas por prisões e mortes violentas. Pela leitura torna-se claro que a solução desses problemas passa por decisões políticas e econômicas, mas também de planejamento urbano, pois essa realidade de exclusão ocorre em locais bem definidos: os bairros mais pobres, como as periferias, e as favelas, que são os territórios mais vulneráveis das nossas cidades.

 

Segundo o estudo “Aglomerados Subnormais” do IBGE, as favelas abrigavam em 2010 11% dos habitantes da região metropolitana (RM) de São Paulo, 14% dos habitantes da RM do Rio de Janeiro, 23% de Recife, 27% de Salvador e mais de 54% dos habitantes da RM de Belém.

 

A vida nesses territórios é muito mais precária do que na cidade formal – não só pela exclusão econômica e social, mas também pela deficiência urbanística. As casas são construídas independentemente da propriedade do terreno, deixando os moradores em situação de vulnerabilidade jurídica. Não há sistema de saneamento, e o esgoto doméstico é despejado nos rios, córregos e mangues. As chuvas provocam inundações nos terrenos e nas casas das várzeas; a ocupação ilegal de áreas íngremes e fundos de vale, sujeitas a deslizamentos e alagamentos, põe em risco moradores e acelera a degradação do meio ambiente. As vielas, ladeiras e escadões não permitem a passagem de ambulâncias e caminhões de lixo ou de entrega.

 

Não é por mero elitismo que o governo ignora a cidade informal. É difícil gerir o território da informalidade com o arcabouço jurídico do Estado brasileiro, baseado em exigências idealizadas que, com muita frequência, não correspondem à realidade. Nossa Constituição define como direitos a educação, a saúde, a habitação – mas o Estado não dá conta de garanti-los.

 

Temos o hábito de recorrer a leis para procurar corrigir problemas sociais – mas isso, com frequência, apenas produz novas distorções. Um exemplo representativo: para evitar que inquilinos vulneráveis fiquem sem casa, criamos uma Lei do Inquilinato excessivamente protetora, o que afasta os donos de imóveis do mercado formal, deixando-o pequeno, caro e inacessível para a maior parte da população, que se vê obrigada a recorrer ao mercado informal de aluguéis – sem proteção ou garantia alguma.

 

O que realmente transforma a sociedade são políticas públicas eficazes, bem implementadas e precisas em sua avaliação dos problemas sociais e da capacidade de atuação estatal. O dispositivo constitucional que afirma que habitação é um direito é louvável, mas pouco ajuda aos moradores de favelas se não houver programas de urbanização dessas comunidades.

 

Se a qualidade das construções nas favelas é perigosamente ruim, a solução não é um código de obras mais rígido – o que só levará mais gente a evitar as inspeções e vistorias – e sim o apoio técnico à construção civil. A solução dos problemas urbanos nem sempre está em respostas mais duras. Punições rigorosas não são suficientes para que as transgressões deixem de ocorrer; é preciso oferecer alternativas para aqueles que estão na ilegalidade.

 

Não se está pleiteando, naturalmente, leniência com toda irregularidade ou ilegalidade. A ocupação de áreas de risco, que pode resultar em acidentes de extrema gravidade, ou de áreas de mananciais, que ameaça a qualidade da água que abastece toda a cidade, não pode ser tolerada.

 

É preciso ter em mente, ainda, que a regularização de assentamentos ilegais pode transmitir a mensagem de que o Poder Público pode “consertar” os problemas da cidade que surge espontaneamente, quando sabemos que o melhor seria que o crescimento da cidade se desse dentro do que foi planejado, de acordo com a rede de serviços e a infraestrutura existentes.

 

A resposta do Poder Público à precariedade urbana tem de ser inteligente – em alguns casos, coibindo; em outros, apoiando. É preciso haver sensibilidade e senso crítico para diferenciar as duas situações. Ao mesmo tempo, não basta apenas exigir mais do Poder Público; os cidadãos devem ser corresponsáveis pelas suas escolhas. Os brasileiros precisam aceitar que não há solução fácil para nossa dramática crise social. Devemos aprender a escutar os demais e pensar no que se ouve antes de emitir julgamentos ou apresentar propostas. Trata-se de uma questão de amadurecimento intelectual e político.

 

Os brasileiros que vivem em condomínios fechados, andam em carros blindados e evitam muitas partes da cidade podem enxergar os problemas decorrentes da exclusão como uma simples questão de violência e policiamento, vendo-se como vítimas numa sociedade dividida entre nós e eles, “cidadãos de bem” e bandidos. O livro Prisioneiras cumpre um papel importante ao desconstruir essa simplificação a partir do universo feminino, mostrando que muitas vezes as pessoas que vivem à margem são, como todos, capazes de acertos e de erros, de momentos de generosidade e de mesquinhez; são seres humanos que fazem o que podem para sobreviver em circunstâncias muito desfavoráveis.

 

Talvez o mais impressionante para quem não vive a realidade das favelas e da ilegalidade seja descobrir que, mesmo restringindo-se à cidade formal, não há como fugir da cidade informal. Mesmo quem não mora nas favelas está em contato com os seus habitantes diariamente – nas suas casas, escritórios, na vivência cotidiana da cidade. Não há como isolar-se. Quem opta por morar nas cidades abre mão do isolamento. A divisão entre cidade formal e informal é uma ilusão. A cidade é uma só — a cidade real.

 

Em 2016, entre as 20 cidades com maiores índices de homicídio do mundo, oito eram brasileiras. A atual política de segurança pública não está reduzindo a violência, apesar de estarmos aprisionando a quarta maior população carcerária do mundo. É impossível não reconhecer que os problemas da cidade real não serão superados pela construção de mais muros e condomínios ou pela blindagem de carros.

 

Nossa Constituição vai completar 30 anos. Ela foi um passo fundamental para disseminar a ideia de que reduzir as desigualdades é o objetivo mais nobre a que podemos aspirar enquanto sociedade. Agora é preciso reconhecer que direitos não se fazem na teoria, no papel — quem os garante são as políticas públicas, postas em prática num ciclo ininterrupto de formulação, implementação, avaliação e reformulação. É para essa cidade real que devem se dirigir as políticas públicas e os projetos urbanos. É o momento de nos engajarmos, todos, no difícil exercício de escutar e pensar, de olhar para o todo, de compreender o outro e definir a cidade em que queremos viver e a sociedade que queremos ser.

 

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Texto originalmente publicado no blog do Esquina no Estadão.