A pátria de pneus traz prejuízo

Por Marisa Moreira Salles, Tomas Alvim e Washington Fajardo
04/09/2018
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MANCHA - Paraisópolis, na Zona Sul paulistana: o controle sobre a expansão horizontal dos centros urbanos é algo imperioso (Eric Bergeri/VEJA) MANCHA - Paraisópolis, na Zona Sul paulistana: o controle sobre a expansão horizontal dos centros urbanos é algo imperioso (Eric Bergeri/VEJA)

O Brasil precisa reinventar seu modelo de desenvolvimento, deixando de priorizar os veículos particulares para organizar cidades mais humanas

 

O Trava-língua é um tipo de jogo verbal infantil no qual a fala em velocidade de palavras com sílabas fonéticas semelhantes ou de difícil pronúncia induz ao erro, convertendo-se em um enunciado complicado, exaustivo e até impossível de ser dito em cadência — para fazer graça e entreter os participantes.

 

Não é difícil estabelecer um paralelo entre a brincadeira e o Brasil, uma nação continental com elevada taxa de urbanização (85% da população vive em cidades) que está travando o potencial de desenvolvimento de sua sociedade ao criar cidades insolúveis, graças à repetição estéril de um ideário nacional-desenvolvimentista cujo repertório de mobilidade se apoia num trinômio: o automóvel particular como medida de performance econômica; a expansão das manchas urbanas catalisada por subsídios públicos e por omissão de planejamento; e a suspensão de obras e o baixo investimento em transporte de alta capacidade nas regiões metropolitanas.

 

O ideário da industrialização nacional das décadas de 50 e 60 concebeu uma capital modernista na tábula rasa natural do Planalto Central. O desenho viário fluido e desobstruído de Brasília é a forma estética e simbólica da alavancagem da indústria automobilística no país, dando tempero latino ao sonho americano. Era esse o Zeitgeist, o espírito do tempo do pós-guerra, que passou a incorporar desejos ufanistas nas décadas seguintes, de modo que nos últimos cinquenta anos — tanto na ditadura quanto em governos ditos progressistas — reafirmamos essa abordagem insustentável da organização dos territórios urbanos.

 

A redemocratização de meados da década de 80 trouxe esperança e otimismo movidos pelo sonho da recostura social em centros históricos reabilitados das capitais brasileiras. Esses princípios foram confirmados na Constituição de 1988, detalhados no Estatuto da Cidade, de 2001, e operacionalizados com a criação do Ministério das Cidades, em 2003. As Jornadas de Junho de 2013, por sua vez — iniciadas, vale lembrar, com os protestos pelo aumento das tarifas de transporte público em várias capitais —, deixaram claro, com sua cacofonia política, que o bom urbanismo precisa urgentemente converter-se na nova agenda pública nacional.

 

Tornou-se evidente hoje que ou priorizamos a escala humana das cidades, a implementação de políticas habitacionais coerentes com nossos centros urbanos esvaziados, combatendo a segregação espacial e os longos deslocamentos, ou corremos o risco de acirrar de maneira irreversível a “guetificação” da cidadania brasileira, embarcando em processos perigosíssimos de desconstrução da democracia.

 

Não se trata mais, portanto, de apontar os jogos infantis de prefeitos incompetentes, mas de exigir que governantes assumam um compromisso com a população urbana. O próximo presidente da República deverá ser um aliado do prefeito de cada município das 28 maiores regiões metropolitanas, onde vivem cerca de 98 milhões de brasileiros. Nessas áreas, a estabilidade demográfica — com baixas taxas de crescimento e porcentual mais alto de pessoas na fase ativa — é benéfica para o enfrentamento dos problemas urbanos, pois a demanda pela cidade está reduzida. Por outro lado, isso confere uma janela de trinta anos — uma geração — para o equacionamento dos desafios de infraestrutura. A partir daí, teremos uma população envelhecida em territórios ineficientes — o pior cenário. O controle sobre o crescimento das manchas de urbanização é imperioso, pois este produz desequilíbrio fiscal ao gerar, continuamente, a necessidade de melhorias nas novas áreas antropizadas, aquelas que tiveram alteradas as suas características originais.

 

Esse controle só será possível se o programa Minha Casa Minha Vida for radicalmente reformulado, convertendo-se em fomento à reciclagem de edifícios ociosos e ao readensamento das áreas centrais, com mais ênfase na constituição de um parque público de moradias para aluguel social e menos na oferta de propriedade privada. Ou seja, é essencial oferecer acesso à cidade e a seus benefícios coletivos, deixando o acesso à casa própria para um momento de maturidade das famílias. Há que ter um olhar dedicado à juventude urbana, que vem dando contínuas provas de resiliência e inovação nas periferias, inventando soluções, negócios e artes e criando bens públicos apesar da omissão dos governos. Isso mostra que a sociedade civil organizada é eixo fundamental para a transformação urbana.

 

“Ou implementamos políticas habitacionais que combatam a segregação, ou acirraremos a ‘guetificação’ da cidadania”

 

Portanto, a primeira decisão para uma melhor mobilidade no futuro é começar a reorganizar o uso do solo nas cidades hoje, compreendendo que a reabilitação dos centros constitui também uma opção por uma economia mais sustentável, indutora de crescimento e de cidadania.

 

É importante ainda trabalhar com as novas tecnologias e absorver o conceito de compartilhamento, em que as pessoas são protagonistas do deslocamento, começando por andar a pé e chegando a bicicletas, carros compartilhados, e, é óbvio, com a integração tarifária entre modais de alta capacidade.

 

O Brasil precisa reinventar urgentemente seu modelo de desenvolvimento urbano, deixando de ser expansionista e de priorizar o carro e as receitas públicas auferidas com multas, e passar a organizar cidades mais humanas, inclusivas e eficazes, nas quais a riqueza da urbanidade possa ser compartilhada.

 

* Marisa Moreira Salles e Tomas Alvim são fundadores do Arq.Futuro, plataforma de discussão sobre cidades; Washington Fajardo é arquiteto e urbanista

 

Publicado originalmente em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598