Anna Livia Arida | Impressões de Belo Monte

De canoa no Rio Xingu, a advogada ouviu diversos lados da construção da usina hidrelétrica no Pará
14/10/2015
Compartilhar:

Neste artigo, não pretendo fazer um retrato preciso de toda a complexidade que envolve a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no coração do Xingu, Pará. Quero, sim, trazer um relato do que vi acontecendo na região e contribuir para a reflexão sobre como grandes obras estão sendo conduzidas no Brasil.

A convite do Instituto Socioambental (ISA), embarquei para Altamira na sexta-feira 11 de setembro. Chegando lá, o motorista Celso me aguardava no aeroporto. No caminho para o hotel, ele resolveu me mostrar algumas áreas da cidade que seriam afetadas pela barragem: ruas com casas demolidas e algumas ainda sobreviventes, esperando sua hora de ir ao chão. Não imaginava que o alagamento se prolongaria para dentro da cidade. Celso me disse que sua casa fica na "cota 112" (a cidade foi dividida em cotas e as que estão abaixo do número 100 seriam demolidas por causa da água), mas não estava seguro: "Sabe como essas coisas são feitas, não dá muito pra confiar que a água não vai chegar lá".

O grupo convidado pelo instituto (ao redor de 40 pessoas) se reuniu no Centro Betânia para um dia e meio de conversas e depois quatro dias descendo o Rio Xingu de canoa. Nessa jornada, tive a oportunidade de ouvir lideranças indígenas, ribeirinhos, representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e da promotoria federal. E assim começo a entender do que se trata Belo Monte.

CAPÍTULO 1: INJUSTIÇA

Apesar da resistência história dos povos indígenas e de alguns movimentos sociais, Belo Monte foi, em certo momento, aceita por boa parte da população sob a alegação de que a obra traria investimentos importantes para a infraestrutura e o desenvolvimento social para a região. Em visita a Altamira, em 2010, o então presidente Lula destacou a importância de Belo Monte para o desenvolvimento do Xingu.

Hoje, muito se ressentem do ex-presidente. Lembram que ele garantiu que a usina só seria construída se fosse em benefício de todos, que traria educação e saúde. Erwin Kräutler, bispo do Xingu há 32 anos, em entrevista à Folha, relatou: "Agora não tem mais volta. O PT é uma das maiores decepções de minha vida. Lula mentiu para mim, quando disse que o projeto só sairia se fosse em benefício de todos, sem meter goela abaixo da população". Não é isso que está acontecendo. Uma liderança indígena comentou comigo: "Lula disse que Belo Monte era prioridade, que sairia de qualquer jeito. E está sendo feito de qualquer jeito mesmo".

As histórias de injustiça impressionam: muitos moradores ribeirinhos receberam indenizações de R$ 9 mil, R$ 10 mil. Os critérios do Consórcio Norte Energia, responsável pela realização da usina, para estabelecer o montante indenizatório consideravam apenas o valor da casa (se de palha, com telha, com banheiro etc.), mas não o modo de vida da população local. Os ribeirinhos, por exemplo, vivem da pesca, e sua expulsão para a cidade acaba com a atividade que garante seu sustento. Como reestabelecer uma vida com R$ 10 mil? Um terreno na periferia da cidade não saía por menos de R$ 30 mil. Em reportagem da Folha, outra informação: uma casa no centro, que antes valia R$ 80 mil, passou para R$ 400 mil.

Outro problema foi a realização do cadastro das famílias que deveriam ser reassentadas ou indenizadas. A própria Norte Energia foi responsável pelo processo e, segundo relatos, nem todos foram incluídos. O conflito de interesses é evidente: quanto mais famílias cadastradas, mais indenizações a pagar ou reassentamentos a construir. Além disso, a defensoria pública nem sempre esteve presente para acompanhar esse processo. Ribeirinhos relataram que o consórcio oferecia R$ 10 mil – ou uma briga na Justiça. Se já seria difícil com um bom advogado, que dirá sem um. Muitos aceitaram por falta de alternativa.

Talvez essa seja uma das razões pelas quais se diz que a energia hídrica é barata. Não se garante o mínimo indenizatório para as populações afetadas e abusa-se do poder econômico para esmagar as reivindicações por justiça. Uma defensoria forte no município é o mínimo que se exigiria para um momento delicado como esse.

A situação da Fundação Nacional do Índio (Funai) tampouco era das melhores durante a implementação de Belo Monte. Em 2014, uma ação do Ministério Público demandava que o governo federal, a Funai e a Norte Energia cumprissem oito medidas – entre elas, uma definição sobre a sede da Funai em Altamira e a apresentação da relação dos servidores que trabalhariam na região. Segundo o MP, a Funai teria apenas metade dos servidores necessários para atender aos impactos do empreendimento, e a insuficiência de recursos impediria "fiscalizar as ações das subcontratadas na Norte Energia para obras na aldeia".

A fragilidade, ou até ausência, dos órgãos que seriam essenciais para garantir um resultado minimamente justo para a população atingida é uma das mais gritantes falhas desse modelo. Concentrar na mão do empreendedor a produção de informações, a realização dos cadastros e a negociação das indenizações me parece um erro, já que o conflito de interesses é demasiadamente evidente.

CAPÍTULO 2: DESCUMPRIMENTO DAS CONDICIONANTES

Em 2010, o Ibama concedeu a licença prévia de Belo Monte e estabeleceu uma série de medidas que deveriam ser cumpridas para preparar a região para o esperado aumento de população (ações preparatórias) e para prevenir, mitigar e compensar os impactos da obra.

Essas medidas, denominadas condicionantes, são ações que condicionam o recebimento das licenças. Ou seja: sem o cumprimento dessas medidas, não poderiam ser dadas as licenças subsequentes pelo Ibama. Na prática, no entanto, não foi isso que aconteceu. As ações não cumpridas foram sendo jogadas para as etapas seguintes e as licenças foram dadas para garantir a obra pronta dentro do prazo.

Entre as ações preparatórias estava a construção do Hospital Geral de Altamira. O pico da obra foi em 2013, mas o hospital foi concluído apenas em 2015. Durante a viagem de canoa, soube que a lotação do hospital local era tanta que a regra era apenas realizar cirurgias com fratura exposta. Dona Raimunda, que viajava com a gente, estava com o braço quebrado, mas não tinha conseguido operar.

Outro exemplo de condicionante não cumprida diz respeito ao saneamento da cidade. Uma das obrigações da Norte Energia era instalar sistemas de abastecimento de água e esgoto em Altamira. De acordo com o relatório do ISA, 220 km de redes de esgoto e 170 km de redes de água potável foram instalados e as estações de tratamento estão prontas, mas as tubulações não estão conectadas aos domicílios e imóveis comerciais. A Norte Energia afirma que não é sua obrigação realizar essas ligações, mas a Companhia de Saneamento do Pará discorda. Enquanto o impasse não é resolvido, não há perspectiva de operação do sistema de saneamento básico na cidade.

O descumprimento das condicionantes indígenas mereceria um livro à parte, mas um dos aspectos mais chocantes foi a implementação de um "plano emergencial", que consistia na entrega de produtos como TVs, alimentos industrializados e óleo diesel, além de uma mesada de R$ 30 mil por aldeia. A prática, condenada pela procuradora Thaís Santi, teve efeitos desestruturantes nas comunidades, como aumento da desnutrição infantil, interrupção dos cultivos de subsistência e estabelecimento de uma relação clientelista entre lideranças indígenas e o consórcio.

CAPÍTULO 3: JUSTIÇA

Diante dessa realidade, impossível não perguntar: e onde entra a Justiça nessa história? Descobri que a Justiça tem essencialmente atuado para garantir que a obra seja entregue no prazo esperado. Parece claro para o Judiciário que todos os direitos humanos violados e condicionantes podem esperar; mas Belo Monte, não.

O recurso "suspensão de segurança" tem permitido ao governo suspender as decisões de primeira instância que determinaram a paralisação da obra, até o julgamento do último recurso do processo. Nem preciso dizer que as origens desse recurso datam da época da ditadura. Graças a tal recurso, boa parte das 23 ações já propostas pelo MP não tiveram o condão de suspender a construção da usina. O Judiciário, nas suas instâncias superiores, vem trabalhando para assegurar o cumprimento do cronograma energético do governo.

CAPÍTULO 4: DINHEIRO

Estimada em R$ 16 bilhões e leiloada por R$ 19 bilhões, o custo da Hidrelétrica de Belo Monte já supera os R$ 30 bilhões. Quase 80% são financiados pelo BNDES, o maior valor de empréstimo da história do banco para um único projeto.

Na época em que foi divulgada a construção de Belo Monte não faltaram reportagens e documentários denunciando os impactos nefastos da obra à população local, ao meio ambiente e aos povos indígenas. Como poderia o BNDES, tem que como missão também o desenvolvimento social, conceder tamanho empréstimo para uma obra nessas condições, com tamanho impacto negativo? Talvez por isso tenha me chamado bastante a atenção uma notícia informando que o Tribunal de Contas da União (TCU) investigará os contratos de Belo Monte em razão do envolvimento das construtoras na Operação Lava-Jato.

CAPÍTULO 5: O TEMPO

Não é possível no prazo de cinco anos (entre a concessão da licença prévia em 2010 e o pedido da licença de operação em 2015) preparar uma cidade para um aumento de quase 50% de população, planejar e executar ações de mitigação de impacto e, ao mesmo tempo, construir uma usina hidrelétrica.

No caso de Belo Monte, já estava previsto no contrato de concessão o prazo para o início da venda de energia (início da operação comercial) e os contratos de financiamento condicionavam a liberação dos empréstimos à obtenção da licença de operação. Essas medidas, que em tese fazem sentido, têm uma grave consequência: a execução das condicionantes socioambientais fica subjugada ao cronograma da obra, o que não se mostra factível na prática. Num cenário complexo como é a Amazônia e o Xingu, uma análise cuidadosa dos impactos socioambientais, o diálogo real com as populações tradicionais e o desenho das ações mitigatórias deveriam ser feitos antes da construção, e não durante.

Uma das alternativas apresentadas pelo Instituto Socioambiental é a seguinte: o poder público deveria assumir, com o apoio do BNDES, a realização das obras e investimentos antecipatórios, garantindo assim um mínimo de estrutura para o início de uma construção. Esses valores podem inclusive ser reembolsados pelo empreendedor no fim da obra.

CAPÍTULO 6: POR FIM, O COMEÇO

Hoje Belo Monte é um fato. A luta agora é para garantir que o Ibama não dê licença de operação até que a Norte Energia cumpra todas as condicionantes e para que não se inflija à região novos impactos negativos. Entretanto, já existem planos de construir uma série de hidrelétricas no Rio Tapajós (mais de 40 usinas planejadas ou em construção). Pelo andar da carruagem, é provável que os inúmeros atropelos, injustiças e ilegalidades, já vistos em Belo Monte, se repitam.

Na aflição de perceber que pode acontecer com o Tapajós o mesmo que vi no Xingu, diria que o mais importante no momento seria que o governo reconhecesse a necessidade de pensar uma nova maneira de enfrentar o desafio energético brasileiro. Não podemos mais tolerar que o governo se veja no direito de passar com o trator por cima da vegetação, dos direitos das comunidades ribeirinhas e indígenas e do sonho de quem acreditou que uma grande obra traria desenvolvimento para sua região. As experiências já mostraram que, da maneira como os empreendimentos são conduzidos, isso não acontece.