Carlos Alberto Maciel | Muito além da sombra do viaduto

Considerar a apropriação exige pensar construções menos como objetos fechados e mais como fragmentos de cidade
03/09/2015
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Para Maria Elisa


Paul Valéry dizia que o valor da obra de um homem não está na obra em si, mas nos desdobramentos que ela gera em mãos alheias, em outras circunstâncias. Por isso me parece importante voltar a atenção a obras exemplares, que nos inspirem a repensar a relação entre edifício e cidade, contribuindo para a construção de espaços de liberdade.


Um breve olhar sobre as metrópoles brasileiras evidencia a baixíssima qualidade da arquitetura. De um lado, edifícios ordinários sem invenção, produzidos pela especulação imobiliária, drenam todos os centímetros quadrados de áreas livres para convertê-las em produtos desprovidos de generosidade e de sentido público. De outro lado, edifícios extraordinários, destinados a usos institucionais, construídos a partir de uma lógica tecnocrática que gera espaços monumentais com forte controle, repelindo qualquer possibilidade de apropriação informal. Por último, obras viárias, estritamente limitadas à resolução do deslocamento motorizado, desprezam a possibilidade de construção de lugares qualificados para uso público. 


Não é novidade que a arquitetura se conforme como um potente instrumento de restrição das liberdades. Henri Lefebvre já alertava sobre isso ao reconhecer a arquitetura muito mais como instrumento de coerção do que um suporte à liberdade e um estímulo à criatividade. De fato, se analisamos como a arquitetura surge nos primeiros abrigos, nos fortes, castelos, muralhas ou organizações pan-ópticas dos claustros de hospitais, conventos, presídios e escolas, veremos que os esforços do planejamento historicamente convergiram para a criação de barreiras que constituem domínios territoriais controlados.


Poderíamos pensar, portanto, que bastaria derrubar os muros para construir espaços de liberdade. Mas há um aspecto menos visível (e mais silencioso) do cerceamento das liberdades pela arquitetura: a pré-determinação funcional e simbólica de suas estruturas. Nesse sentido, o funcionalismo – que pode ser sintetizado no lema falacioso de que "a forma segue a função" – adquiriu papel central na programação da vida cotidiana com a eliminação das margens de indeterminação que permitiriam alguma abertura à apropriação. Quando digo "apropriação", entendo no sentido lefebvriano: apropriação como fazer.


No texto Towards an architecture of enjoyment, Lefebvre defende que é preciso repensar a arquitetura superando sua lógica histórica de representação do poder, propondo que passe a operar como um suporte que estimule a vivência criativa no cotidiano. Pensar uma arquitetura do prazer se coloca no polo oposto da arquitetura do entretenimento e do consumo, em que tudo é mediado, programado e dirigido. Lefebvre diz que é preciso superar o meramente funcional, passando a pensar a arquitetura como infraestrutura cuja perfeição é sempre incompleta, o que ampliaria a margem à apropriação criativa dos espaços.


A apropriação é da ordem do imprevisível, do não planejado. É uma espécie de efeito colateral positivo de algumas arquiteturas. Considerar a apropriação exige certa abdicação por parte do arquiteto quanto à determinação da forma final dos edifícios e, em última instância, exige pensá-los menos como objetos fechados e mais como fragmentos de cidade, cuja capacidade de transformação para acomodar o imprevisível e o imponderável construiria um sentido verdadeiro de urbanidade.


Quanto menos for determinada a conformação de um edifício, maior será a abertura à apropriação. E, portanto, a arquitetura precisaria ser indeterminada funcionalmente e aberta simbolicamente. Pressupõe, ainda, considerar que a construção se faz no tempo, num processo diacrônico do qual o arquiteto e a concepção inicial são apenas uma parte da vida dos edifícios.


Essas ideias talvez fiquem mais claras quando olhamos para uma obra fundamental, talvez a mais radical invenção do mais importante arquiteto brasileiro: a Plataforma Rodoviária de Brasília, projetada por Lucio Costa. Concebida em conjunto com o Plano Piloto, foi imaginada como o principal espaço de articulação intermodal do sistema de transportes da cidade, integrado ao seu centro de comércio e serviços, definindo o nó principal daquele conjunto de lugares e equipamentos que constituiriam o que o autor denominou “Escala Gregária”. Em mãos menos hábeis, poderia ter sido apenas um viaduto resolvendo o principal cruzamento da capital federal. Mas, com a sutil sabedoria de Lucio Costa, que reconheceu o potencial da sombra do viaduto e lhe introduziu mais camadas, a estrutura viária, edificada com a mais avançada engenharia da época, tornou-se arquitetura e se integrou radicalmente à paisagem urbana, constituindo um lugar verdadeiramente público, talvez o mais importante da cidade.


A plataforma pode ser entendida como uma "sombra apropriada": a partir da sobreposição de seus vários planos de laje, uma disposição espacial virtuosa, sem paredes, reforça a possibilidade de convívio e troca. A ausência de fechamentos amplifica seu sentido urbano e sua continuidade física com o território, uma qualidade notável da arquitetura moderna brasileira que decorre especialmente da nossa condição climática tão favorável à eliminação dos fechamentos e à integração relaxada entre os domínios do interior e do exterior. Em outras palavras, é uma grande varanda, como nas casas coloniais: aquele lugar sem função definida e, justamente por isso, onde todos os usos são possíveis.


A sabedoria do arquiteto se revela já nos croquis de estudo para o Plano Piloto, em que a horizontalidade que faz desaparecer a plataforma se contrapõe à verticalidade dos dois únicos elementos arquitetônicos pensados para dominar a paisagem: a Torre de Televisão, de um lado, e o Congresso Nacional, de outro. A ambígua condição da plataforma se percebe na impossibilidade de caracterizá-la: não é arquitetura, nem infraestrutura viária nem paisagem nem cidade, mas um pouco de cada coisa em uma rara síntese entre campos de conhecimento. Essa indistinção, ou melhor, essa indissociabilidade entre arquitetura, engenharia, urbanismo e paisagem é exemplar sobretudo hoje, em que as especializações segregam os conhecimentos em práticas monofuncionais e monodisciplinares, o que torna impossível imaginar que o conhecimento possa transitar tão belamente.


O que se projeta é o que é perene, para além das circunstâncias de uso. Se as estruturas que projetamos duram significativamente mais do que as pessoas que as motivam, que as inventam e que as habitam, o entendimento da arquitetura como infraestrutura pressupõe o reconhecimento desses elementos mais permanentes e menos circunstanciais. É o imutável que cria condições para a transformação, é o permanente que liberta o temporário, como diz Bernard Leupen. E é a soma entre esse suporte que pode ser inventado pelo arquiteto e os diversos momentos da sua existência, distante das mãos de quem o concebeu, o que constitui a potência de uma arquitetura da liberdade.


Quem melhor evidenciou essa condição imprevisível foi o próprio doutor Lucio que, um dia, ao ver a Plataforma Rodoviária plenamente ocupada pela população, confessou: "Caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a Rodoviária, à noitinha. Eu sempre repeti que essa Plataforma Rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélites improvisadas da periferia. É um ponto forçado, em que toda a população que mora fora entra em contato com a cidade. Então eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive nos arredores e converge para a Rodoviária. Ali é a casa deles, é o lugar onde se sentem à vontade. […] Isso tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. É o Brasil... E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser, Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais. Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído."


Trata-se de uma obra negligenciada pela crítica e pela historiografia. Esse esquecimento talvez decorra de sua maior virtude: a dissolução da arquitetura, que não convoca os fotógrafos e não emociona pela aparência, como diversos outros monumentos tão importantes da capital, mas constitui um lugar público, extensão e reinterpretação da cidade. Talvez seja ela a própria síntese da ideia daquela cidade específica, uma vez que articula e define o cruzamento dos dois eixos que singularizam e identificam o traçado urbano de Brasília.


Não é coincidência que, 53 anos depois de sua inauguração, o lugar privilegiado das manifestações de junho de 2013 em Brasília tenha sido a plataforma. Mais do que tantos outros lugares cívicos e monumentais da capital, é ela que melhor acolhe, por sua urbanidade condensada, as mais variadas manifestações da vida cotidiana, evidenciando um sentido público pleno. Um exemplo raro de arquitetura da liberdade.