Cidades, essa conversa criativa

17/05/2016
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As conversas que se fundem em acontecimento são uma demonstração de entendimento. Quando percorro as ruas das cidades sinto-me envolvido numa enorme conversa. Cada rua com os seus edifícios, as praças, os jardins, os recantos, as vielas, são conversas continuadas com relações que se estabelecem em cada elemento que compõem toda esta malha.

A personalidade de cada sítio é o mote para a pronunciação dos elementos que o compõem, e nestas deambulações citadinas sou levado a análises diversas, observando o todo, os grandes volumes até os seus mais particulares detalhes. Afilam-se as marcas históricas portadoras do tempo ali conservado, um tempo em curso, cabimentado pela personalidade da geografia, do sítio, das gentes.

Frequentar a cidade é entregar-nos à experiência de a descobrir, como tão bem descreveu Baudelaire ao falar do flâneur, o ser que vai pela cidade, deambulando por ela e procurando qualquer coisa. Se bem que Baudelaire falava do transitório, do fugidio numa ideia de modernidade. No entanto, quero que o sentido de uso da cidade se centre no percurso que nela fazemos e ao qual nos entregamos para nela habitarmos. É precisamente neste habitar que retomo a ideia da cidade como conversa, uma vez que ao habita-la vou estabelecer uma relação que me impelirá a um entendimento com a urbe. Esse entendimento resultará do que a urbe me dá e do que eu lhe posso entregar. Estarei a consolidar laços, a aplicar rotinas, a provocar reações. Cada cidade tem as suas lógicas, a sua identidade, o seu pulsar e a sua dimensão, mas, no seu princípio, responde a uma organicidade comum. E é por esta que conseguimos os códigos primários para a mobilidade em cada cidade.

A existência da cidade está sustentada pela orgânica de vários intervenientes, com papéis muito distintos, num jogo de equilíbrios e sustentabilidades. O arquiteto desempenha um papel muito especial no erguer de uma cidade, a ele se recorre para edificar os diversos “corpos” que a compõem, o uso do desenho estrutura as lógicas da habitabilidade e da convivência, reinventando a sustentabilidade urbana.  

Ao surgimento da obra assiste a estruturação de uma ideia, que se funda na articulação de propósitos que lhe conferem ajustes e a fazem alcançar a sua realização. Respostas práticas à mais trivial das necessidades, ajustes de funcionalidade, inserção no meio e articulação com os espaços envolventes são soluções da arquitetura perante o fulgor da urbe. Retomando a conversa que se tem com a cidade quando a habitamos, aludo para uma conversa muito particular que reside na cidade, que nos dá uma respiração muito singular, pelos resultados que contempla e estes nos enaltecem os dias. 

Refiro-me ao diálogo já histórico da relação da arquitetura com as artes plásticas, de um modo particular com a pintura, a escultura. Esta relação estreita assiste um diálogo muito profícuo e faz do mesmo um existir de teores grandiosos, que extravasam uma resposta meramente prática, mas, em contrapartida, expandem os espaços e lhes dão amplitudes bem mais plenas. 

Pensar o diálogo que se estabeleceu entre a arquitetura e as artes plásticas ao longo da sua história de existência é pensar na interlocução das ideias, no processo, no tornar realizável, no ver concretizado. Tal articulação permite-nos hoje estar perante singulares espaços, que o são, pela arquitetura que têm, pela resposta que deram às necessidades que lhes eram impostas, mas, também, porque albergam uma presença de obras de arte que lhes conferem uma personalidade, um carácter e uma consistência muito para além da utilização mais convencional.

No séc. XX algo dessa relação foi sendo descontinuado, ou até mesmo despreocupado, mas os resultados sentem-se nas deambulações pela cidade: assalta-nos ao olhar alguma frieza que está nos edifícios ou espaços onde esta relação não foi estabelecida. Em contrapartida, quando nos deparamos com exemplos onde esse diálogo foi estabelecido, onde arquitetura e artes plásticas estiveram envolvidas num projeto comum, os resultados são esclarecedores e a nossa relação com os espaços e os edifícios é merecedora de atenção.

No Porto, a cidade portuguesa que habito, tenho exemplos destes em que se estabeleceram relações muito profícuas, onde a nossa passagem pelos locais não é indiferente ou neutra – afinal,existe uma força muito singular que os impele.

Apresento dois exemplos de períodos diferentes, onde se estabeleceram diálogos, um primeiro exemplo do edifício situado na Rua de Ceuta, no centro da cidade – o edifício Soares & Irmãos de 1950-53,  de serviços e habitação coletiva, dos Arquitetos Cassiano Barbosa e Arménio Losa. Somos contemplados com um enorme mural, na fachada ao nível da rua, da autoria do pintor Augusto Gomes, que nos confere uma experiência muito singular na relação com o edifício e na passagem pelo passeio que acompanha o mural.

O outro exemplo é o do edifício Burgo, da autoria do Arquiteto Eduardo Souto de Moura, com a ligação da obra do artista Ângelo de Sousa, uma escultura de grande dimensão pintada de verde e vermelho, situado na Avenina da Boavista, uma artéria relevante na cidade. Esta obra conjunta dá uma dimensão muito particular daquela torre que se vê acompanhada por uma escultura, que resulta de uma chapa recortada e dobrada, usando de uma grande simplicidade que dialoga com a simplicidade do desenho arquitetônico da torre. A cor aplicada na escultura vem provocar uma vibração que equilibra as escalas do edifício e da escultura, somos agarrados pelos panos da cor e vamos equilibrando com a tonalidade de cinzas do edifício.

Com estes exemplos quero dar a concluir que a cuidada relação do arquiteto com o artista pode chegar a resultados plenos e que estes fazem com que sejamos levados a uma cuidada observação. Já não somos só transeuntes. Concedemos algum do nosso tempo ao local, à experiência que este nos provoca, levamos agora algo mais para além de uma passagem. Somos dados a pensar aquele espaço, o que nele está para além da sua vertente funcional. A conversa se estabelece e admitimos dialogar, aumentando as razões que nos levam a fruir dos espaços, a habitá-los e a manter a conversa com a cidade.