Um edifício-cidade: o caso do Jockey Club do Rio

03/02/2016
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No último artigo tratei da Plataforma Rodoviária de Brasília, projetada por Lucio Costa, a meu ver a mais radical experiência de integração entre arquitetura, infraestrutura, urbanismo e paisagismo realizada no Brasil. Volto agora a outra obra do Doutor Lucio, igualmente subestimada pela historiografia, e tão valiosa como exemplo para a construção de cidades melhores: o edifício da Sede Social do Jockey Club do Brasil, no Rio de Janeiro, projetado em 1956.

São raros os exemplos de edifícios que tornam melhores os lugares em que se implantam. Mais raros ainda são aqueles pensados como modelos, que fazem avançar as tipologias usualmente reproduzidas nas cidades. Esse é o caso do Jockey Club. Ao se deparar com a possibilidade de construir uma quadra inteira no centro do Rio, com uma demanda complexa que envolvia a implantação de um clube associada à previsão de espaços comerciais e salas para locação e renda da instituição, e ainda a necessidade de abrigar uma significativa quantidade de automóveis, já àquela época uma questão, Lucio Costa concebe uma disposição espacial virtuosa em que as diversas atividades se distribuem em um arranjo tridimensional que assegura a cada parte a sua melhor condição ambiental e a melhor relação com a cidade. Em outras palavras, o Jockey não é um edifício. Melhor entendê-lo como quatro edifícios em um, em que o desenho da arquitetura subordina o edifício à cidade.

EDIFÍCIOS 1 E 2: ESCRITÓRIOS E LOJAS

Os dois edifícios de escritórios constróem as fachadas das ruas de menor hierarquia, em uma bela "comodulação, (...) onde cada vão foi decomposto em uma parte central e fixa e duas lâminas laterais de abrir", que agradava particularmente ao seu autor; evitando as preguiçosas soluções frente-fundos, sua organização permite que todas as salas olhem a rua, qualificando-as pela relação com a cidade ao aproveitarem a totalidade das fachadas úteis e iluminadas. Os térreos, recuados, definem um espaço intermediário, público e abrigado, que responde à exigência da continuidade das loggias do centro do Rio, reforçam o uso público da rua ao abrirem para esses espaços as lojas, criando "fachadas ativas", atualmente tão defendidas como dispositivos urbanísticos de qualificação do espaço público, e oferecem um percurso coberto, abrigado da chuva e do sol, tão desejável em um país tropical.

EDIFÍCIO 3: O CLUBE

Ao dispor a entrada principal do clube na fachada de desenho monumental voltada para a Avenida, Lucio Costa reconhece e assume a diferenciação hierárquica entre as vias urbanas circundantes para reforçar a mesma diferenciação hierárquica entre os edifícios comuns, de escritório, e o edifício excepcional, do clube. Mas é na cobertura que a sagacidade do mestre se revela: aos modos de um solo artificial que restitui o chão da quadra em uma cota elevada, recupera-se um espaço que usufrui do sol e da privacidade para dispor todos os equipamentos esportivos e áreas abertas na melhor condição ambiental, aos modos de uma praça.

EDIFÍCIO 4: EDIFÍCIO-GARAGEM

Envolvido em três lados pelos edifícios de escritório e na frente e acima pelo clube, o vazio central do conjunto, que em outros tantos costuma conformar um pátio interno lúgubre e pouco convidativo, abriga o quarto e último edifício, o edifício-garagem. Construído com uma estrutura metálica que permite menores alturas e por consequência um número maior de pavimentos interligados por rampas com 785 vagas de estacionamento, tem acesso pela rua hierarquicamente menos importante, com menor presença de pedestres. A sábia disposição espacial ocupa o miolo escuro com um uso menos nobre, e evita a usual partição volumétrica de base, torre e coroamento em que as funções se empilham indiscriminadamente e se revelam na paisagem urbana, como na maioria dos edifícios das cidades brasileiras.

1+2+3+4 = UM EDIFÍCIO-CIDADE

A habilidosa disposição tridimensional inventada pelo arquiteto é sobretudo um modelo virtuoso para a ocupação de uma quadra urbana, reconhecendo as qualidades e o potencial de cada parte e explorando com rigor o potencial das variadas relações entre o excepcional e o comum, o monumental e o cotidiano, a cidade e o edifício.

Quando o visitei pela primeira vez, entrei silenciosamente em um dos edifícios de escritório e me dirigi a um pavimento-tipo qualquer. Na circulação, me pus a procurar uma porta que permitisse aceder ao estacionamento que sabia estar ali, atrás da parede. Indagado sobre a localização dessa passagem, um funcionário que chegava para o trabalho me informou que, para ter acesso ao estacionamento, eu deveria descer ao térreo, sair do edifício, dobrar a esquina e entrar pela outra rua. Eu sempre imaginei o quanto seria interessante estacionar no oitavo ou nono andar, abrir uma porta e encontrar o escritório. Mas não, eu estava enganado. Aquele era um edifício moderno, em que as funções se organizam separadamente.

Aquele não era "um" edifício, mas a combinação de outros quatro, independentes entre si. A resposta do cordial funcionário iluminou subitamente algo que levei anos buscando compreender: uma das diferenças entre um edifício moderno e outro contemporâneo seria a introdução, naquela complexa justaposição espacial e funcional modernas, de um grau ampliado de articulação entre as partes. Em outras palavras, a diferença entre o Jockey Club moderno, realizado brilhantemente por Lucio Costa, e um Jockey Club contemporâneo, que eu imaginava possível, seria a transformação dos quatro edifícios em um, ampliando a conectividade entre as partes e, por consequência, reduzindo sua pré-determinação funcional, de modo a permitir inclusive que, ao longo da vida do edifício, cada uma das partes pudesse ir mudando de uso conforme a necessidade de seus diversos usuários. Esse talvez seja o edifício-urbano que um arquiteto como o holandês Rem Koolhaas faria contemporaneamente, se confrontado a situação semelhante.

Doutor Lucio não disse, mas poderia ter dito: Jockey Club, edifício-cidade que inventei. Sem dúvida, invenção era uma palavra recorrente - e uma prática virtuosa - na vida do mestre. Se desejarmos cidades melhores, mais do que o reproduzir esse modelo, caberá às próximas gerações reinventá-lo.

PARA SABER MAIS:
* Uma breve descrição do projeto e suas razões é apresentada por Lucio Costa em seu livro autobiográfico Registro de uma vivência, editado pela Empresa das Artes.
* Plantas, cortes e documentação fotográfica de qualidade aparecem no livro Lucio Costa, de Guilherme Wisnik, editado pela Cosac Naify.
* Recentemente, uma análise crítica notável sobre diversos edifícios que constituem a escala metropolitana do Rio de Janeiro incluiu o Jockey Club, classificando-o como "edifício-quarteirão". Esse estudo, do qual fazem parte os desenhos que ilustram esse artigo, gentilmente cedidos pelo arquiteto Pedro Varella, pode ser encontrado no guia Rio Metropolitano, de Guilherme Lassance, Pedro Varella e Cauê Costa Capillé, editado pela Rio Books com apoio da FAPERJ.