Em que território vivemos?

24/02/2016
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Ser colunista de um site como o Arq.Futuro é uma honra para um jovem/adulto, afinal, aos 30 anos, ainda me considero um jovem que nasci, cresci e sobrevivi no Capão Redondo, periferia da cidade de São Paulo.

E por que essa honra? O ato de travessar a "ponte" que separa a periferia do centro de uma cidade, e chegar a esse lugar, diz respeito ao fato de ser um produtor de cultura e agente de conhecimento -- atividades que contam muito no processo de transformação sociocultural dos seres humanos, vivam eles ou não em periferias de megalópoles, como é o caso da cidade de São Paulo.

Cidade? O que é cidade? Essa temática é uma das grandes #inquietações que tenho como cidadão do mundo, mas com endereço fixo... em uma cidade.

Vivemos em um país? Estado? Ou cidade? As pessoas, sejam crianças, jovens, adultos ou idosos, possuem envolvimento com educação, saúde, transporte, emprego, entre outros campos, dentro do território de uma cidade. Sendo assim, vivemos e convivemos na cidade-município. Ninguém vive na Nação, ninguém vive no Estado, todos residem na cidade e, sendo mais preciosista ainda, em um bairro da cidade.          

Entender esse ente da federação chamado município é de extrema relevância para qualquer discussão sobre a melhoria da qualidade de vida. E tudo isso ocorre num território que chamamos Cidade. Hoje o Brasil vislumbra esse território como algo de extrema importância, tendo em vista o seu reconhecimento constitucional, o Estatuto da Cidade e o próprio Ministério da Cidade.

A urbanização brasileira deu seus primeiros passos a partir dos centros urbanos ao longo do litoral, no século XVI. Esse processo ocorreu devido à grande produção de açúcar. Outros produtos brasileiros foram trazendo dinâmicas particulares de crescimento aos centros urbanos, nos séculos XVII e XVIII. Produtos como o ouro e o café fizeram parte desse crescimento das aglomerações de pessoas. A população urbana, em 1872, era apenas de 6% do total dos habitantes do país. Mais adiante, a era industrial no século XX torna-se o momento mais significativo no processo de urbanização das metrópoles brasileiras. O crescimento da indústria a partir da década de 30 trouxe um deslocamento das pessoas do campo para a cidade.

Esse processo de povoamento dos centros urbanos acelerou o crescimento das cidades. Crescimento que ocorreu em todas as áreas -- em alguns lugares de forma planejada, mas na maioria das cidades de forma desorganizada. O crescimento desorganizado, por sua vez, trouxe uma série de desafios a serem enfrentados por esses centros urbanos. Pobreza, desemprego, falta de equipamentos públicos, habitação, transporte e trânsito surgiram como graves problemas sociais a serem enfrentados pelo Estado.

Entre as decadas de 40 e 80 do século XX, a população brasileira deixou de ser rural para se tornar predominantemente urbana. Durante 40 anos essa diáspora territorial da população rural para os centros urbanos levou grande número de pessoas consideradas pobres para viver em cidades. O modelo de ocupação desordenada fez com que pessoas desprovidadas de recursos financeiros deixassem de ter acesso a condições básicas de cidadania, tendo como consequência o seu afastamento afetivo da cidade.

Atualmente a população urbana brasileira ultrapassou 82% da população total. A cidade de São Paulo se consolidou como a maior metrópole brasileira e está entre as três mais populosas do mundo, com mais de 11 milhões de habitantes.

O Brasil, mesmo dispondo de grande riqueza territorial e agrícola, concentra em pouco mais de 8% dos municípios brasileiros cerca de 55% da população total do país, segundo dados do Ministério da Cidade.

O processo de urbanização, como já visto, atraiu problemas sócio-ambientais para os centros urbanos. A cidade de São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes, passou a concentrar desafios a serem enfrentados pela esfera pública. Hoje cerca de 6 milhões vivem na periferia da cidade, com dificuldade de acesso a educação, saúde, emprego e demais serviços públicos. Essa parcela da população diariamente se desloca por cerca de duas horas para o centro da cidade, tendo como objetivo acessar estruturas que não estão colocadas na periferia.

Cidades necessitam ser pensadas e planejadas por inteiro. E o poder público precisa promover o desenvolvimento de outros centros dentro da cidade. Uma cidade como São Paulo não pode ter a sua macroestrutura planejada em torno da população mais favorecida.

A urbanista Raquel Ronik enxerga as cidades como territórios excludentes, pensados para uma parcela da população. Essa exclusão faz com que a parcela pobre da população tenha dificuldades reais de acesso à estrutura organizada da cidade, o que só ajuda a reproduzir as desigualdades. Assim descreve a urbanista:

“Em uma cidade dividida entre a porção rica, legal e infraestruturada e a porção pobre, ilegal e precária, a população em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades econômicas e culturais que o ambiente urbano oferece. O acesso aos territórios que concentram as melhores condições de urbanidade é exclusivo para quem já é parte deles.”

Em outro trecho do estudo A lógica da desordem, a urbanista descreve da seguinte forma a insustentabilidade das cidades: 

“Em primeiro lugar, a concentração das oportunidades em um fragmento da cidade e a ocupação extensiva de periferias cada vez mais distantes impõem um padrão de circulação e mobilidade dependente do transporte sobre pneus e, portanto, de alto consumo energético e potencial poluidor. Em segundo lugar, a ocupação das áreas frágeis ou estratégicas do ponto de vista ambiental – como mananciais de água, complexos dunares ou mangues – é decorrente de um padrão extensivo de crescimento por abertura de novas fronteiras e expulsão permanente da população mais pobre das áreas ocupadas pelo mercado”

A definição de qualidade de vida é muito subjetiva, no entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi uma das pioneiras a propor uma definição na qual podemos observar elementos que estabelecem as condições mínimas para um cidadão possuir qualidade de vida. A definição é a seguinte:

“É a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto, na cultura e no sistema de valores em que vive e em relação aos seus objetivos, expectativas e preocupações”.

Sanar desigualdades sócio-ambientais é de vital importância para haver qualidade de vida nas cidades. A presença do Estado nas periferias, estimulando a geração de empregos e ampliando o acesso a educação, saúde e lazer, trará para a cidade inteira aumento significativo na qualidade de vida das pessoas. Promulgado em 2001, após mais de 10 anos de discussão, o  Estatuto da Cidade também surge como tentativa de democratizar a gestão das cidades, criando novos instrumentos de intervenção do poder público.

Muitos são os elementos de discussão sócio-política sobre o território de uma cidade. Essas discussões necessitam ganhar a dimensão e a importância necessárias para a melhoria da vida das pessoas que residem, trabalham, estudam ou simplesmente transitam por uma cidade. Necessitamos que as pessoas  possam ter as relações afetivas com a cidade, pois assim cuidaremos e seremos cuidados por ela de uma forma melhor.

Vivemos nas cidades! Nossas relações ocorrem nas cidades! Elas são fundamentais para mudar os paradigmas sociais, econômicos e políticos da sociedade brasileira.