GRANDES OBRAS URBANAS E A COMUNICAÇÃO COM A COMUNIDADE AFETADA

Entrevista com Vitor Machado Lira, da empresa Circlepoint
07/02/2019
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Vitor Machado Lira, brasileiro radicado nos Estados Unidos, é consultor associado da empresa Circlepoint, que atua fazendo projetos ambientais e comunicação para entidades públicas e empresas privadas que planejem executar grandes obras. Na frente de comunicação, a Circlepoint promove o diálogo entre o órgão ou empresa e a comunidade que será afetada, desde as etapas iniciais do planejamento até a execução do projeto.  Nesta entrevista para o Arq.Futuro, ele conta sobre os benefícios de se promover esta comunicação e a forma estruturada que encontraram para promover o diálogo entre técnicos especializados e cidadãos leigos de forma a construírem decisões bem informadas.

 

Qual foi o papel da Circlepoint nas consultorias em que você trabalhou?

 

Participei, como consultor da Circlepoint, de três projetos recentes: na cidade de San José, do projeto Smart Moves San José, visando o aumento do uso de transporte público; para a Universidade de Stanford, as novas moradias para estudantes de mestrado e Ph.D., em Escondido Village e o novo campus em Redwood City; e, na cidade de Palo Alto, no projeto de re-design do corredor ferroviário que divide a cidade. Nos três casos, nosso trabalho envolvia promover a comunicação entre as partes, ou seja, viabilizar o diálogo entre a organização proponente do projeto e a população a ser beneficiada ou afetada. A metodologia para estabelecer esse diálogo é chamada de structured decision making, que pode ser traduzido como “construção estruturada de decisões”.

 

Modelo digital do novo campus da Universidade de Stanford em Redwood City (Divulgação)

 

Poderia explicar o método de construção estruturada de decisões?

 

Uma grande obra, seja ela pública ou privada, sempre afeta as pessoas que habitam ou frequentam o entorno. Este método tem por objetivo permitir que o proponente e a comunidade cheguem às decisões juntos, em diálogo. Consiste em apresentar à comunidade as diferentes formas que o projeto pode tomar, e revelar os prós e contras de se fazer o projeto pela forma A, B ou C. A comunidade é envolvida para se manifestar, ter ideias e expressar os seus valores. Este método deve envolver os membros interessados e afetados por potenciais iniciativas de desenvolvimento, do início ao fim. É um esforço consciente de superar certas estratégias convencionais de tomada de decisão em grandes projetos, em que o diálogo com o público era muito limitado, consistindo apenas em notificações unilaterais, tomada de decisão de cima para baixo, e eventuais compensações financeiras aos afetados.

 

Neste processo, portanto, as prioridades e necessidades da sociedade são refinadas e expressas em seus planos para o presente e para as gerações futuras. Não é um processo que exija capacidades mentais extraordinárias, porém ele requer pensamento crítico para avaliar questões abrangentes e identificar quais argumentos e valores são fundamentais. O processo não mira um objetivo fixo como retorno monetário, áreas verdes, ou democracia direta. Ele é uma ferramenta para gerar soluções tangíveis, híbridas e flexíveis para problemas diversos de acordo com um contexto específico. Trata-se de um caminho para evitar batalhas ideológicas, partidárias ou legais, realizando exercícios de coletividade que permitem que o cidadão seja envolvido, ouvido, representado e relevante.

 

Imagem aérea da obra da Universidade de Stanford em Escondido Village: intervenções desta escala exigem a comunicação com a comunidade. (Divulgação)

 

Em que momento de um projeto de desenvolvimento urbano o método de construção estruturada de decisões é posto em prática?

 

Idealmente, desde as fases iniciais de concepção do projeto. É a raiz de qualquer intervenção do governo ou da iniciativa privada. Se o governo vai fazer um projeto, ele deve criar uma plataforma online, ou pôr gente na rua distribuindo panfletos para engajar a comunidade, identificar as percepções do público, discutir soluções possíveis para os problemas que podem surgir. A partir dessa coleta de percepções é que especialistas do governo, academia e setor privado criariam as propostas.

 

Nesse processo, tenta-se entender a perspectiva do público. Se os técnicos veem um problema e a população não vê, faz-se uma campanha educativa, de conscientização. Por vezes, a população não sabe que o seu bairro poderia estar melhor que poderiam ter melhor qualidade de vida fazendo ajustes, então cabe aos especialistas mostrar por que eles avaliam que o bairro deveria receber aquela intervenção, e de que formas isso poderia acontecer. Assim, a população toma consciência do benefício em potencial.

 

Pode ser preciso fazer uma simulação do projeto, mostrar o que já foi feito em outras cidades, onde uma intervenção similar deu certo, trouxe resultados positivos. Se não veem o problema, talvez trazendo os benefícios à tona, a sociedade se interesse. As pessoas do entorno devem ter consciência sobre os possíveis benefícios e problemas que podem decorrer da intervenção.

 

Em qualquer projeto, é preciso mostrar para as pessoas interessadas ou impactadas qual será o investimento, quanto dinheiro, tempo e esforço estão implicados nas soluções possíveis. Como um alfaiate, é preciso tirar as medidas para ter o conforto. Não adianta fazer um prédio muito complicado, como um vestido todo elaborado, se quem vai vestir quer um vestido simples, preto e branco. Não se pode ignorar quem vai usar, quem vai ser afetado.

Nosso objetivo, portanto, é a troca de informações para entender o que as pessoas querem e como reagem aos cenários futuros possíveis.

 

Esta forma de promover a comunicação durante o processo de desenvolvimento de grandes projetos é uma novidade?

 

Sim. Só vi isso ser implementado na Califórnia. Está saindo agora do contexto acadêmico, de universidades como a de Michigan, e indo para fora, para projetos em execução. Está sendo aplicado para infraestruturas de fornecimento de energia, por exemplo.

 

Na Califórnia, no município de Palo Alto, a prefeitura queria criar uma estrutura de decisão junto ao povo, que foi autorizada por volta de 2010. Mas, com a mudança da prefeitura, sua criação acabou ficando parada. A Circlepoint entrou no final de 2016, como um grupo de consultoria para fazer a parte de comunicação. Mas, apesar de a vontade ser, supostamente, pegar as soluções do público, a prefeitura não está fazendo isso. Coletamos as informações, a opinião do público, suas ideias, mas elas não estão sendo usadas no processo decisório, infelizmente.

 

Apesar de a comunidade de Palo Alto ser excepcionalmente educada, escolarizada, inclusive em engenharia, e com líderes funcionários públicos capacitados, a participação é pequena. É uma comunidade que poderia contribuir muito no processo de decisão, mas acaba não participando, porque não existem bons canais de comunicação para que se manifeste a respeito dos grandes projetos.

 

Há conflito entre a forma tradicional de tomada de decisão em projetos públicos, em que o político eleito decide sozinho, e esta nova forma, que envolve a participação direta? Como os políticos estão lidando com esta novidade?

 

O envolvimento do público, tradicionalmente, é apenas eleger, autorizar o político a tomar as decisões. Mas, depois, para implementar o projeto, é importante que o político eleito consulte a população de novo. Pode ser online ou fisicamente, em praças e eventos frequentados, para perguntar às pessoas o que elas acham, ouvir ideias, sugestões, e criar um relacionamento de colaboração. Não basta eleger a pessoa e achar que vão fazer aquilo que você gostaria. As pessoas têm visões diferentes. O projeto tem que ser elaborado em consultas. Também é importante divulgar informações sobre quem irá financiá-lo, quais serão os custos, informar sobre as linhas gerais dos contratos, as obrigações, o cronograma. Na execução do projeto é que serão definidos diversos aspectos e características que têm grande importância para a comunidade local, como elementos de design, possíveis custos adicionais, possíveis benefícios. Se o publico não está envolvido na execução, o voto é, essencialmente, cego.

 

Detalhes vitais, que vão levar ao sucesso ou fracasso do projeto, não podem ser determinados pelo político e seus técnicos sozinhos. É fundamental envolver a comunidade para que o projeto e sua execução tenham legitimidade. A comunidade é uma stakeholder, uma parte interessada, que tem a ganhar e perder com os detalhes do projeto. Se vai ser feita uma ciclovia, é preciso consultar a comunidade para definir onde serão os pontos de acesso, quanto vai custar se for feito de uma forma ou de outra, se vai estar aberta todos os dias etc. Executar de maneira transparente e em diálogo com as pessoas é que leva a um projeto bem sucedido.

 

Poderia citar um exemplo?

 

É o caso do projeto em que trabalhei para a prefeitura de Palo Alto. Há uma linha férrea que corta a cidade, e a circulação de um lado para o outro da linha é difícil, há poucos cruzamentos. A prefeitura nos convidou para avaliar a visão dos moradores sobre isso, pensar possibilidades de mudança, seus custos e benefícios. Discutiram-se os detalhes: como ficariam as ruas, os ramais, quais abertos, quais fechados. Fizemos discussões com os representantes, workshops. As pessoas se uniram e criaram o projeto, e depois os consultores fizeram os cálculos e apresentaram as soluções mais viáveis, os custos de cada uma. Portanto, para uma comunidade ter o desenvolvimento local que deseja, ela deve ir além de eleger os políticos. Essa mudança de perspectiva traz para o político, ou para o representante do projeto, a responsabilidade de servir a população, ser o alfaiate que cria a medida certa. Muito diferente da mentalidade que se vê normalmente entre os políticos, em qualquer lugar do mundo.

 

Linha férrea corta a cidade de Palo Alto, na Califórnia (EUA). (Google Earth, 2019)

 

E em lugares em que a população é menos educada, é possível aplicar esse processo de tomada de decisão?

 

É possível, seguramente. Para populações com muita ou pouca educação formal, o desafio é o mesmo: como traduzir os desejos do cidadão comum, leigo, para os especialistas, as pessoas que vão criar o desenho executivo do projeto, que vai realmente ser executado? E como traduzir os cálculos e projetos técnicos de volta para a comunidade? Tive um professor, Joseph Arvai, que fez isso num vilarejo na Tanzânia, para identificar as preferências dos moradores para filtrar água. Fez-se uma tabela com desenhos, e as pessoas apontavam ali as suas preferências. As pessoas sendo consultadas, na sua maioria, não tinham formação sobre os diferentes métodos de filtragem, seus custos, vantagens e desvantagens. Até então, o que faziam era buscar água num poço a 15 quilômetros da aldeia. Os pesquisadores apresentaram os vários métodos, mostraram os equipamentos, fizeram juntos os experimentos para identificar a presença de bactérias, e os moradores experimentaram a água produzida por cada método de filtragem, sentiram o gosto, avaliaram a aparência, o tempo que demorava cada processo, quanto custaria, e assim a comunidade decidiu. Não foram os cientistas que decidiram. Não era uma comunidade de pessoas formadas como em Palo Alto. Mas o processo de tomada de decisão foi um sucesso, a população se informou sobre as vantagens e custos de cada método possível e tomou sua decisão.

 

Numa etapa do processo de construção estruturada de decisões, moradores de vilarejo na Tanzânia avaliam o resultado de diferentes formas de filtragem de água. (Joseph Arvai, 2011)

 

O exemplo desse professor e sua equipe num vilarejo rural sugere que seja possível transportar o modelo para diversos contextos sociais. O princípio norteador é mostrar para a população que será beneficiada (ou afetada) os custos e benefícios das várias alternativas, num processo de troca, de interação, de educação. É assim que são descobertas as soluções mais desejáveis.

 

Poderia nos contar um pouco mais sobre os três projetos em que trabalhou – San José, Stanford e Palo Alto?

 

Em San José, o Departamento de Transporte (DDT) se juntou à Circlepoint, ao grupo Action Research e ONGs locais para criar um diálogo com moradores e trabalhadores locais para solucionar os graves congestionamentos da cidade. No condado de Santa Clara, onde San José se encontra, mais de 80% de todas as viagens são feitas por motoristas dirigindo sozinhos, contribuindo para que Santa Clara tenha quatro das quinze cidades com os piores congestionamentos nos Estados Unidos. Com a participação pública, o DDT criou o projeto para examinar as barreiras e benefícios do transporte pessoal, em comparação a uma vida mais ativa e sustentável fora do automóvel. Nossa equipe conduziu entrevistas, eventos, enquetes, e gerou canais de comunicação e materiais para captar as perspectivas de residentes, empresários e empregados do centro da cidade para guiar o aprimoramento da infraestrutura local. Baseados em nossos achados, nós desenvolvemos ferramentas para ajudar os cidadãos a experimentarem uma nova cultura de uso do transporte público, incluindo aplicativos para celulares e passes eletrônicos de ônibus, bondes, trens, compartilhamentos de bicicletas e sistema de caronas (carpool).

 

Sobre a Universidade de Stanford, seu Departamento de Administração de Projetos se aliou à Circlepoint para produzir materiais informativos sobre suas obras e manter canais de comunicação constante com os indivíduos e departamentos impactados, de forma a diminuir a inconveniência no dia-a-dia. Um desses projetos envolve construir novas residências para 2.500 estudantes no coração do seu campus. Nossa estratégia é manter canais próprios para escutar a comunidade e distribuir alertas várias vezes por semana e com antecedência sobre as condições das ruas, estacionamentos, calçadas, e a disponibilidade de luz elétrica, água e espaços de estudo.

 

Finamente, em Palo Alto, sob a direção da conselheira Nancy Shepherd entre 2010 e 2015, o Departamento de Planejamento e Desenvolvimento organizou vários exercícios com líderes da comunicade local para compreender quais elementos do atual corredor ferroviário precisavam de mais atenção. Esse projeto foi trazido à pauta devido a previsão de maior demanda e freqüência no tráfego de trens no futuro próximo, o que impactaria drasticamente os congestionamentos e a segurança para motoristas, pedestres e ciclistas na região. O projeto identificou como solução desejável - no olhar de cidadãos e especialistas da cidade - uma ferrovia subterrânea, e deu início a estudos de viabilidade.

 

 

Etapas do processo de construção estruturada de decisões:

1. Formação de uma equipe-guia de projeto, com líderes conscientes, comunicativos, e que pensam criticamente sobre tradições econômicas, políticas e culturais;

2. Realização de pesquisa cuidadosa sobre os problemas regionais, fundada em questionários e entrevistas com cidadãos sobre suas preocupações e objetivos;

3. Identificação dos atributos e medidas dos problemas e objetivos reportados que precisam ser considerados para criar alternativas de mudança;

4. Concepção de alternativas construídas em conjunto com os membros da comunidade, via simulações de cenários, com potenciais alterações e consequências;

5. Cotejamento dos possíveis custos e benefícios das alternativas construídas, que deve ser produzido de modo transparente por entidades competentes e dividido com o público;

6. Ao final desse processo aberto de criação e comunicação, a decisão de iniciar o projeto de desenvolvimento deve ser tomada em conjunto, levando em consideração os dados e conclusões dos elementos anteriores.