Lições de inteligência e liberdade

22/08/2016
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Uma bienal para o terceiro mundo. Assim uma arquiteta italiana que encontrei em Veneza definiu desdenhosamente a XV Bienal Internacional de Arquitetura, dirigida pelo arquiteto chileno Alejandro Aravena e intitulada Reporting from the Front [Notícias do front], aberta ao público entre 28 de maio a 27 de novembro de 2016.

O que para arquitetos acostumados a trabalhar em contextos com poucas diferenças sociais, econômicas, culturais, étnicas e tecnológicas pode parecer enfadonho por aparentemente --apenas aparentemente-- não trazer aportes significativos para um certo modo dominante de produzir arquitetura, pode ser entendido, com outro olhar, como um momento fundamental de virada no panorama dominante das últimas bienais, voltado para a produção arquitetônica de exceção. Na bienal de Aravena, a exceção virou regra. Essa é a boa notícia.

Mas, como nem tudo são flores, o que se pode ver nos pavilhões do Giardini e nos salões do Arsenale é um conjunto de ações com forte apelo social, mas por vezes arquitetonicamente pouco interessantes, enfatizando mais os princípios do que os fins. De outro lado, aparecem propostas ambientalmente comprometidas, mas que transpiram um ar de feira de ciências, enfatizando mais os meios do que os fins.

São dois lados de uma mesma moeda que traz a preocupação com o planeta e com as pessoas para quem a arquitetura nunca antes tinha sido um valor. Entre esses dois conjuntos aparecem projetos, instalações e obras absolutamente desconectados do tema, do princípio, dos meios e dos fins propostos pelo curador, evidenciando compromissos e concessões que enfraquecem o resultado final do que poderia ter sido uma opção curatorial radical.

A primeira batalha perdida nesse front foi o próprio tema: a proposta originalmente apresentada pelo curador à direção da Bienal, intitulada a partir de Dante Alighieri como Inferno. Purgatorio. Paraíso, propunha convocar 50 práticas de arquitetura do planeta para identificar um problema, analisar seu contexto criticamente e propor uma solução viável. Essa ideia que, como na bienal anterior, de Rem Koolhaas, tinha a esperta estratégia de transformar uma exposição em uma ação propositiva, foi recusada e deu lugar a Reporting from the Front.

Em meio a esse contraditório panorama, contudo, é notável a seleção dos premiados dessa edição: o Leão de Ouro pela trajetória foi conferido ao arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, ratificando a relevância da sua obra para a arquitetura mundial. Nas mostras, o Leão de Ouro foi compartilhado pela representação espanhola e pela instalação construída pelo arquiteto paraguaio Solano Benitez.

Os primeiros trouxeram um conjunto de obras da Espanha pós-crise cuja qualidade confirma a já reconhecida competência de seus arquitetos. São intervenções de escalas variadas que revelam como a mobilização de pré-existências por vezes desprezadas e a consideração do tempo como fator crucial para a criação arquitetônica permitem transcender o contexto de escassez econômica em que se realizaram, em forte contraste com um sem número de obras inacabadas que restou do período de fartura econômica, produção intensa e pouca reflexão. A ideia do inacabado orientou a própria expografia, com uma estratégia curatorial sensível centrada em fotografias em grandes formatos das obras e uma estrutura pênsil que amplia as possibilidades de eventos, conceitualmente articulada às discussões sobre tempo, mutabilidade e indeterminação.

De outro lado, a abóbada construída por Solano Benitez na principal sala do pavilhão central é um manifesto acerca de uma certa inteligência construtiva calcada na experimentação e amparada por um saber fazer que se constrói historicamente. Curiosamente, o alto grau de experimentação da obra de Solano quase impediu sua construção em um contexto altamente normativo como o europeu. Essa tensão, sutilmente revelada pelas sofisticadas fôrmas de madeira utilizadas na sua produção, bastante diversas do alto grau de improvisação das suas obras paraguaias, é um indício dos impactos nem sempre positivos da normatização no desenvolvimento do conhecimento humano. Em sentido amplo, a obra de Solano nos fala sobre a necessidade de preservar um lugar para a pesquisa e para a invenção, em oposição às sucessivas perdas de liberdade que produzem um estrangulamento da criatividade na arquitetura e na vida, ambas hiper-normatizadas, como já consolidado nos países desenvolvidos e em acelerado processo por aqui.

É, entretanto, da menor sala do pavilhão principal que vem a maior lição de inteligência e liberdade da mostra. Não coincidentemente está em um vídeo que apresenta uma visão crítica dos processos de normatização e regulação da paisagem e do uso do solo, produzido pelo ativista alemão Arno Brandlhuber. Dentre as diversas iniciativas que comparecem ao longo dos quase 60 minutos de vídeo, pautadas pela busca de uma melhoria da qualidade de vida urbana associada à necessidade de preservar um lugar para a invenção, o arquiteto suíço Luigi Snozzi discorre sobre as suas sete regras para Monte Carasso.

Quando chegou à pequena vila de pouco mais de 2.000 habitantes no cantão suíço do Ticino, havia mais de 250 regras para a construção no lugar. Snozzi propôs ao então prefeito reduzir toda essa regulação às seguintes sete regras:

1. Qualquer intervenção deve ter em conta a estrutura da vila e deve se relacionar com ela.

2. Todos os projetos serão avaliados por uma comissão de três especialistas cujas reuniões devem ser públicas (os dois outros especialistas não foram indicados nos doze primeiros anos, o que fez de Snozzi o único responsável pela regulação da vila. Snozzi conta ironicamente que teria argumentado com o prefeito sobre as vantagens disso: além de gastar apenas um terço no pagamento dos especialistas, não permitiria que um membro transferisse responsabilidades aos demais).

3. Não há restrições relacionadas ao projeto. A tipologia do edifício, formas e materiais não são objeto de regulamentação.

4. Para ampliar a densidade, os edifícios dispensam qualquer afastamento em relação à rua ou a edificações vizinhas.

5. O coeficiente de aproveitamento do solo urbano amplia-se de 0,3 para 1,0.

6. A altura máxima das edificações é 9 metros e elas devem se limitar a 3 pavimentos. Edificações com laje plana podem acrescentar mais 2 metros (posteriormente ampliados para 3 metros para permitir um terraço coberto sobre os edifícios).

7 . Muros perimetrais devem ser construídos junto à rua com altura de 2,5 metros (posteriormente reduzidos para 1,2 metro).

É notável, para não dizer impressionante, que a qualidade urbana de um lugar possa se realizar a partir de regras e procedimentos tão simples. Na base das sete regras de Snozzi para Monte Carasso estão, de um lado, um raro posicionamento de chamar a si a responsabilidade sobre a condução de algo que é de interesse público, sem concessões; de outro lado, a confiança no conhecimento e na responsabilidade profissional, assegurando a liberdade de ação, sem censura; e, por último, uma lição de inteligência e civilidade, ao admitir que as regras não são garantia de qualidade e que é possível ir além delas. Em contextos como o da produção das cidades e da arquitetura no Brasil hoje, contaminados pela burocracia e pela corrupção --duas faces de uma mesma moeda que se funda na perda do sentido público e da responsabilidade e credibilidade dos agentes, sejam eles públicos ou privados--,  essa rara inteligência é exemplar. Gostaria de viver o dia em que a regra mais importante de Snozzi --a oitava, não escrita-- pudesse ser aplicada em nosso contexto.

(A oitava regra, não escrita: Qualquer regra pode ser quebrada se o projeto for melhor do que a regra em questão).