Porto do Rio: novos projetos, antigos interesses ou antigos projetos, novos interesses?

por Katia Maria de Souza
10/07/2017
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Por ocasião do seminário Avenida Paulista: Novos Projetos, Novos Rumos, o Arq.Futuro convidou alguns autores para escreverem sobre as mudanças nos usos dos centros históricos e eixos culturais das cidades brasileiras. Neste artigo, a arquiteta e professora Kátia Maria de Souza apresenta suas reflexões sobre a Zona Portuária do Rio de Janeiro.

 

As discussões sobre os projetos desenvolvidos na “revitalização” da zona portuária carioca apontam para a forma como as intervenções foram conduzidas pelo poder público em associação com a iniciativa privada, buscando, de alguma forma, atender a demanda instaurada pelos grandes eventos ocorridos nos três últimos anos, Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016.

 

Tal região da cidade do Rio de Janeiro foi historicamente alvo de interesses públicos e privados desde a sua formação. A própria construção da zona portuária foi fruto de uma parceria do poder público com a iniciativa privada, durante o último quartel do século XIX.

 

Os primeiros registros remontam à 1870, quando começaram a surgir estudos sobre a malha urbana, impulsionados pelos problemas de saneamento urbano e das epidemias. Algumas parcerias chegaram a ser firmadas, mas as obras não foram concluídas, o que levou ao cancelamento das concessões. No entanto, muitos dos técnicos com os quais o governo da época firmou parceria vieram, mais tarde, a atuar efetivamente nas obras de melhoramentos da cidade, já durante o governo de Pereira Passos entre 1902 e 1906.

 

Por exemplo, o engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin, dono da Empresa Industrial de Melhoramentos do Brasil, que havia ganho em 1890 a concessão para obras do porto, foi nomeado pelo presidente do Brasil Rodrigues Alves, em janeiro de 1903, chefe da Comissão Construtora da Avenida Central; já a Comissão de Obras do Porto foi chefiada pelo engenheiro Francisco de Paula Bicalho.

 

As obras empreendidas usaram como base o projeto da empresa de Paulo de Frontin, com algumas modificações. Ao engenheiro Luis Rafael Vieira Souto foi entregue a supervisão técnica das obras, e a execução dos serviços coube à firma britânica C.H.Walker & Cia., ligada diretamente à empresa que havia comprado a concessão das obras do porto da Cia de Melhoramentos do Brasil, que naquele momento passava por dificuldades financeiras[1].

 

Tais engenheiros tiveram atuação significativa não apenas com seus projetos e obras, mas sobretudo no envolvimento que tiveram com o poder constituído, chegando inclusive a assumir cargos públicos, como aconteceu com Pereira Passos, Paulo de Frontin e Carlos Sampaio, personagens com participação ativa nas questões urbanas[2]. Eles representam a ascensão desta classe profissional e apontavam a importância das obras do porto para o desenvolvimento ordenado da cidade.

 

Hoje podemos dizer que as reformas na região portuária do Rio de Janeiro vislumbram um novo cenário na busca da revitalização de uma área que já não atendia às demandas atuais de um porto moderno, mas que mantiveram a mesma postura na condução das obras. Degradada e abandonada, a zona portuária carioca tinha se tornado um corredor viário frio e inóspito, cortada por um elevado construído para atender às demandas da era automobilística de meados do século XX.

 

Esta também é uma região carregada de história, com marcos importantes para história do Brasil e da cidade, como o Cais do Valongo, reconhecido neste domingo 09/07/2017 como Patrimônio da Humanidade pela Unesco e que representa parte importante da história da escravidão no Brasil. O seu entorno, constituído pelos bairros do Santo Cristo, Gamboa e Saúde, representa os primeiros núcleos habitacionais formados pelas classes menos abastadas e sem muita ou nenhuma mobilidade durante os séculos XIX/XX. Formam ainda este entorno parte do Centro da Cidade, Caju e São Cristóvão, bairro que abrigou a Família Imperial. Uma região, portanto, com diversas camadas de história, camadas estas que precisam ser descortinadas garantindo às gerações futuras o domínio da sua história e da sua importância na construção da sociedade brasileira.

 

As reformas de hoje evocam este passado, ressaltando naquele espaço a sua vocação para a indústria criativa e o lazer, emoldurado pela Baía de Guanabara, mas que ainda carece de debate sobre a atuação dos interesses públicos e privados, principalmente diante do impasse sobre a condução das obras que ainda são necessárias, uma vez que a concessionária responsável comunicou à população que está reduzindo suas atividades no projeto de revitalização da zona portuária, relegando-as ao Estado.

 

É sob este panorama que se torna importante a participação dos profissionais da arquitetura e urbanismo na discussão e reflexão sobre os caminhos que a cidade irá tomar. Se no início do século XX interesses públicos e privados levaram à ascensão de um grupo profissional que atuou fortemente para a implantação de um modelo no qual acreditavam, é fundamental que hoje possamos juntar forças para questionar os modelos adotados e pensar sobre qual cidade queremos construir. Repensar as parcerias, refletir sobre os caminhos tomados, questionar as intervenções são atitudes fundamentais para saber se o que nos apresentam são novos projetos e antigos interesses ou antigos projetos e novos interesses.

 

[1] Para se conhecer com mais detalhes este momento da história urbana do Rio de Janeiro e participação destes investidores, ver: BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Biblioteca Carioca, 1990, p.204-234.

[2] Sobre a participação dos engenheiros, sua formação e atuação no urbanismo e arquitetura da cidade do Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o século XX, ver: SOUZA, Katia Maria de. Teoria e prática: a formação e a produção de engenheiros e arquitetos no Rio de Janeiro – 1890-1910. Tese Doutorado em História e Teoria da Arte – Estudos da História e Crítica da Arte, Escola de Belas Artes, UFRJ, 2008.

 

Katia Maria de Souza é arquiteta e doutora em Artes Visuais pela EBA - UFRJ. Coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Veiga de Almeida, campus Tijuca