Quando a arte esculpe a realidade

03/05/2016
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Por Carolina Toledo

Cidades são resultado do acúmulo. O acúmulo de carros, prédios, calçadas, lixo, pessoas. Mas podem ser mais do que isso? Podem ser obras de arte? Essa reflexão foi o ponto de partida para o trabalho de 11 artistas asiáticos convidados pelo Museum of Fine Arts de Boston a produzir esculturas inspiradas nas cidades em que moram: Pequim, Xangai, Nova Déli, Mumbai e Seul. A Ásia é hoje o continente com o maior número de megacidades (com mais de 10 milhões de habitantes). Estimativas das Nações Unidas preveem 24 megacidades no continente até 2030. Esse crescimento desenfreado, ao mesmo tempo em que cria oportunidades, deixa profundas marcas na paisagem urbana, ambiental e social.

A exposição MegaCities Asia, em cartaz até 17 de julho, inclui esculturas de Subodh Gupta, Aaditi Joshi, Hema Upadhyay, Yin Xiuzhen, Asim Waqif, Hu Xiangcheng, Han Seok Hyun, Jeon Yongseok, Ai Weiwei, Choi Jeong Hwa e Song Dong. Para seus trabalhos, esses artistas utilizaram diferentes materiais de uso cotidiano, muitas vezes pré-fabricados ou mesmo descartados nas ruas das metrópoles, como sacos plásticos, garrafas de alumínio, caixas de papelão, entulhos de construção. A partir do reaproveitamento daquilo que as cidades rejeitam, os artistas construíram esculturas que são reflexões sobre as questões de moradia, desigualdade, imigração e espraiamento urbano das grandes cidades.

HEMA UPADHYAY, NOVA DÉLI

Uma das primeiras obras da exposição, 8`X12` (2009) de Hema Upadhyay dá visibilidade para a condição lastimável de moradia da população pobre de Dharavi, uma das maiores favelas do mundo e a mais antiga de Nova Déli. O título da obra se refere ao tamanho médio dos barracos de Dharavi, por volta de 2,4m por 3,6m, em que famílias inteiras – às vezes com até oito pessoas – vivem confinadas.

Dharavi é lar para muitos imigrantes que vem para Nova Déli em situações desfavoráveis em busca de trabalho. Inspirada pelo passado de sua própria família – imigrantes paquistaneses que se mudaram para a Índia em 1947, ano da independência da Grã-Bretanha –, Hema construiu a obra 8`X12`, seguindo as medidas de uma moradia típica em Dharavi. 

Nas paredes e no teto, Hema projetou uma vista aérea da favela. Usando materiais que os próprios moradores possuem para suas construções – folhas de alumínio, sucata e plástico – Hema reconstruiu em miniatura as habitações e ruas estreitas da favela. Ao entrar no espaço da obra, o visitante tem a experiência do confinamento físico dos barracos, ao mesmo tempo em que é confrontado com a vastidão da pobreza e a multiplicidade de uma arquitetura que brota do improviso e da necessidade.  

“Quando eu olho para a arquitetura e a configuração da área, a forma e a cores que elas criam, eu estou vendo Surrealismo, Arte Conceitual, Arte Povera”, observou Hema em uma entrevista para o texto do catálogo da exposição, organizada pelos curadores Al Miner e Laura Weinstein.

SONG DONG, PEQUIM

Song Dong cresceu em uma comunidade no oeste de Pequim durante a Revolução Cultural chinesa. Ele viu sua cidade crescer e se transformar a passos largos de uma cidade de escassez para uma metrópole do excesso. Na Pequim pobre de sua infância, grande parte dos moradores vivia em casas simples de madeira e compartilhadas entre muitas famílias, amontoados em pequenas vilas (ou hutongs). 

Em preparação para as Olimpíadas de 2008, regiões inteiras foram postas a baixo, e muitos exemplos da arquitetura tradicional foram destruídos, inclusive o bairro onde morava a família de Song Dong. Ele se refere a esse período da história da cidade como a “tirania olímpica”.

Song Dong começou a recolher os espólios da transformação urbana para compor suas esculturas. Quando um novo bairro está para ser destruído, Song Dong compra os entulhos das construções e recolhe janelas, esquadrias de porta, telhas, vidro, que depois reusa e reapresenta em obras como Wisdom of the Poor [Sabedoria dos Pobres] (2005), escultura que faz parte da exposição MegaCities Asia.  

Sabedoria dos Pobres é uma referência à época em que chineses usavam de todas as medidas possíveis para melhorar suas condições de moradia. Para expandir suas casas em poucos centímetros, alguns chineses construíam “puxadinhos”, às vezes ocupando espaços entorno de uma árvore ou mesmo os poleiros no telhado das casas, onde membros da família passavam a conviver lado a lado com os pombos, tradicionalmente criados como animais domésticos.

As esculturas de Seong Dong homenageiam essa arquitetura da sobrevivência, ainda marcada na memória de gerações de chineses, que hoje se deparam com as torres espelhadas de uma nova e efervescente Pequim.

HU XIANGCHENG, XANGAI

Outro artista que também coleciona achados de demolições para compor suas obras é Hu Xiangcheng de Xangai. Umas das esculturas mais interessantes da exposição é Doors Away from Home – Doors Back Home [Portas longe de casa – portas de volta à casa] (2016). Hu recupera batentes e portas de casas do período da dinastia Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911). Visitantes podem caminhar dentro da escultura, em um espaço construído com elementos de uma arquitetura descartada e remota.

Algumas portas ainda mantem vestígios de seus antigos moradores. Fotografias, pôsteres, escritos e desenhos ainda estão colados nas estruturas.  Retiradas de seu contexto original, a paredes e as portas se tornam desconectadas das histórias pessoais daqueles que um dia abrigaram.

Vista de cima, a escultura forma o símbolo para a palavra chinesa “madeira” (mu 木) e, somado as paredes da galeria, outra palavra se revela (kùn 困), que significaria “estar preso” ou “estar confinado”. No catálogo da exposição, o artista diz que o termo kùn “evoca a sensação de frustração e incerteza do futuro”.

HAN SEOK HYUN, SEUL, E AADITI JOSHI, MUMBAI

Dois artistas da exposição focados no impacto das megacidades para o futuro do planeta são Han Seok Hyun e Aaditi Joshi, que compuseram esculturas de grande força visual, utilizando materiais descartáveis comumente encontrados nos esgotos e córregos das metrópoles do mundo todo, como sacos e garrafas plásticas. Suas obras são monumentos ao lixo que entope bueiros e causa inundações.  

“Contra o pano de fundo uma paisagem urbana disfuncional, sou inspirada pela forma e potencial do saco plástico ... compelida a mostrar sua dualidade – como um objeto de lixo e um objeto de beleza. Convido o público a observar objetos normalmente ignorados e esquecidos com um novo olhar”, explica a artista indiana.

Han Seok Hyun, por sua vez, construiu uma enorme árvore artificial na instalação Super-natural (2011), com embalagens de produtos comercializados como “verdes”. Por meio da acumulação desses ready-mades, o artista propõe uma reflexão sobre a onda dos produtos orgânicos e ecológicos, cada vez mais comuns nas prateleiras dos supermercados, enquanto nossa relação com o ambiente natural se faz mais distante, com desaparecimento gradual de parques e áreas verdes das cidades.

Para conhecer mais sobre os artistas e sua relação com a cidade, assista às entrevistas organizadas pela exposição MegaCities Asia (http://www.mfa.org/exhibitions/megacities-asia). 

* Carolina Toledo, jornalista, atualmente em Harvard e colaboradora do Arq.Futuro, é formada pela ECA-USP.