Richard Serra relembra, em um artigo publicado em 1988, de um episódio de quando era criança e atravessara a ponte Golden Gate na cidade de São Francisco, onde nasceu, e um guindaste soltara um cargueiro no mar. Descreve, sobretudo, a vulnerabilidade dos expectadores diante daquele peso flutuante, de sua queda perturbadora no mar e na beleza e conforto de todos quando se estabilizou junto às águas. Diz que o episódio é um sonho recorrente que “contém toda a matéria-prima de que necessitava”.
Em 1989, décadas depois do episódio do cargueiro e um ano depois da publicação desse artigo, intitulado “Peso”, guindastes foram novamente convocados, desta vez para retirar uma escultura de sua autoria, Tilted Arc, uma grande placa de aço curva que atravessava a Federal Plaza em Nova York, que havia sido por anos contestada devido a alteração que provocava no percurso habitual dos transeuntes pelo espaço. A escultura foi retirada após protestos, e Serra, apesar da briga por sua permanência, se recusou em remontá-la em outro local.
Os episódios iluminam certas características que atravessam o trabalho de Serra, principalmente suas esculturas, sobretudo a preocupação em dar materialidade à força da gravidade – aquilo que é comum, mas singulariza os corpos – e os espaços indeterminados, desorientados e singulares que cria a partir disso. Serra produz, nesse sentido, obras monumentais que pendulam entre o peso da história (ou do próprio aço de suas esculturas) e a imprevisibilidade da experiência, apenas apreendida na relação entre obra, observador e o entorno.
A escultura é, para Serra, o desenho nos espaços em que é possível inovar na multiplicidade, isto é, separar e dar distinção através do que John Rajchman (2007) chamou de “exercício de pensamento através do aço”. As suas esculturas são originais e desestabilizadoras por não representarem objetos, isto é, porque não ilustram, comemoram ou memorializam histórias (apesar de sua escala), tampouco são a imagem de um pensamento. O colapso do figurativo, condenado pela arte abstrata, não é por Serra ironizado ou condenado, mas disso emergem outras forças através de uma nova orientação dada ao movimento e ao espaço. Com isso, Serra provoca novos potenciais da matéria e dos espaços em que suas esculturas se encontram.
Assim, apesar de abstratas, as suas esculturas reinventam de maneira literal (portanto, não metafórica) as coordenadas usuais que regem os lugares, desfazendo as concepções de horizontalidade e verticalidade, para construir novos espaços específicos aos ambientes em que se localizam. Através de uma confusão de curvaturas, que dilatam e comprimem o lugar, Serra cria objetos que são espaços afetivos (e não infinitos) que nos produzem uma força centrífuga de aproximação ou expulsão. Esculpe com isso um tempo próprio a cada escultura produzindo uma reorientação do pensamento de modo provisório e singular, inventando novas orientações dos seres no mundo através de afetos e percepções criadas na relação entre a obra e sua posição.
Por isso não podemos aprender suas esculturas apenas pela visão, mesmo que a partir de várias perspectivas, mas devemos nos mover por elas. Isso torna as relações com suas esculturas experiências intensivas e muitas vezes conflituosa, que afetam nossos corpos fisicamente. Decorre disso sua indeterminação e incômodo, fruto não de uma megalomania vazia, mas sim das novas composições do espaço refeitos pelas maneiras como nos movemos em relação à elas.
Por isso a insistência de Serra em manter Tilted Arc na Federal Plaza em Nova York, mesmo com o protesto dos moradores, pois ela foi construída naquela posição para interferir na maneira como os corpos se movimentavam previamente naquele espaço. É possível, também, compreender a negação de Serra em transferi-la para outra localidade, porque o que interessa para o seu trabalho é a singularidade da relação entre aquele peso de aço naquela forma e direção, localizado naquela praça específica, criado a partir das maneiras como os moradores se inserem no espaço. À escultura interessava qual a sensação específica de movimento gerada a partir dela com o espaço e seus improváveis agentes, reconduzindo os fluxos e multiplicando nossas capacidades de pensar e ver.
A força que compõe as esculturas de Serra se dá, portanto, na relação com a cidade, pensada como espaço do encontro e do conflito. A imagem do guindaste erguendo sua escultura no Federal Plaza ou do cargueiro no canal de São Francisco reitera, como imaginou Serra desde a lembrança de criança, que o peso não é resultado do volume de material utilizado, mas é delimitado a partir da relação entre os corpos, a obra e o espaço. O enorme cargueiro de toneladas se tornou uma pluma instável diante dos olhares amedrontados dos expectadores, todavia uma fina escultura de aço se tornou um peso descomunal a ponto dos moradores de Nova York se mobilizarem durante anos para retirá-la, encararam-na apressadamente em sua impermeabilidade, ao invés de deixar serem transformados pelo exercício que propunha Serra.
REFERÊNCIAS
Rajchman, John. “Serra’s Abstract Thinking”. In: Richard Serra. Sculptures: Forty years. New York: Moma, 2007.
Serra, Richard. “Weight” (1988). In: Richard Serra: Writings, Interviews. Chicago: Chicago University Press, 1994.