A cidade e a lei: o papel do direito urbanístico na recuperação da urbanidade perdida

18/12/2018
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O processo de urbanização e a formação da cidade dispersa e fragmentada

 

A urbanização das principais cidades brasileiras caracteriza-se, desde meados do século passado, pelo espraiamento horizontal de baixa densidade, com os pobres vivendo nas periferias sem infraestrutura, muitas das quais formadas por loteamentos clandestinos e favelas, e os ricos ocupando as áreas centrais e bem equipadas.

 

Mais recentemente, esse arranjo vem sendo substituído por outro, igualmente nocivo, representado por condomínios ou loteamentos fechados e centros comerciais distantes da mancha urbana, voltados para classes de maior renda e acessíveis apenas por automóvel, ao mesmo tempo em que as áreas centrais entram em decadência e passam a ser ocupadas pela população de baixa renda.

 

O resultado desse processo tem sido o esvaziamento dos espaços públicos, com a sociabilidade sendo transferida toda para os espaços privados. As edificações, isoladas ou reunidas em condomínio, fecham-se sobre si mesmas e não dialogam com a rua, que se converte apenas em sistema viário e afasta o pedestre.

 

A degradação do espaço público

 

No modelo tradicional de cidade, o espaço por excelência da vida urbana são os logradouros, que pertencem ao município, como ruas, praças, parques, calçadas, ciclovias, classificados como “bens de uso comum do povo”[i]. Esses espaços são o suporte físico para o exercício de alguns dos direitos civis e políticos mais caros à democracia, como o de livre circulação, reunião e manifestação e para atividades de lazer e cultura típicas da urbanidade moderna.

 

A falência do espaço público brasileiro se explica por uma série de fatores.

 

Em muitos loteamentos, não se exige do empreendedor a construção de calçadas ou ciclovias, mas apenas do sistema viário. Os terrenos destinados a praças e escolas ficam abandonados, favorecendo a formação de favelas ou sua transformação em depósitos de lixo.

 

Muitos municípios admitem o parcelamento do solo sob a forma de condomínio e não de loteamento, abrindo mão, assim, de receber quaisquer terrenos públicos. Apesar de construídos pelo próprio poder público, muitos conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda reservam terrenos insuficientes para logradouros equipamentos comunitários.

 

Normas de zoneamento afastam as edificações das calçadas e pela exigência de recuos frontais e laterais, e toleram o erguimento de muros e cercas eletrificadas, que acabam com a paisagem urbana e tornam o espaço público mais inseguro.

 

Os assentamentos informais, não há terrenos públicos, mas vielas, muitas das quais demasiado estreitas para a circulação de automóveis. Embora isso prejudique o acesso a serviços públicos como saúde, segurança e coleta de lixo, que dependem de ambulâncias, viaturas e caminhões, esses acessos, destinados exclusivamente aos pedestres, em muitos casos produziram espaços públicos agradáveis e comunitários. O crescimento da violência, no entanto, esvaziou esses espaços, que passaram a ser controlados por organizações criminosas.

 

O pedestre é a principal vítima desse processo, pois muitas áreas da cidade sequer contam com calçadas e as existentes têm sua conservação atribuída aos proprietários dos lotes contíguos, sem qualquer padronização, orientação, apoio ou fiscalização. O estado de algumas calçadas é tão precário que só resta aos pedestres, especialmente àqueles com deficiência ou mobilidade reduzida, fazer uso do sistema viário destinado aos automóveis.

 

Mesmo quando as calçadas são satisfatórias, no entanto, a ausência de lojas abertas à rua, decorrente de normas restritivas de zoneamento e do confinamento do varejo nos centros comerciais e hipermercados de grande porte, torna a experiência do pedestre monótona, desconfortável e muitas vezes perigosa.

 

Não surpreende, nesse contexto, que as ruas sejam progressivamente tomadas por segmentos marginalizados e que os muros passem a servir de tela para grafites e pichações não autorizadas.

 

O papel do direito urbanístico

 

Embora a legislação brasileira seja imperfeita e defeituosa em muitos aspectos, ela fornece elementos suficientes para conter esse processo perverso de urbanização.

 

A Constituição exige que toda cidade com mais de 20.000 habitantes seja dotada de um plano diretor de desenvolvimento e expansão urbana e que a propriedade privada observe suas disposições. Além disso, para garantir o adequado aproveitamento do solo urbano, autoriza os municípios a tornarem compulsórios o parcelamento do solo e a edificação[ii].

 

O Estatuto da Cidade oferece aos municípios diversos instrumentos de gestão do solo urbano e de recuperação da valorização imobiliária. Autoriza, inclusive, mediante acordo com os proprietários, o poder público a promover diretamente o parcelamento ou a edificação dos terrenos ociosos, mediante permuta dos imóveis originais por unidades novas de igual valor[iii].

 

A Lei de Parcelamento do Solo Urbano submete toda e qualquer urbanização a um projeto urbanístico compatível com o plano diretor e baseado em diretrizes fixadas pelo município, nas quais se podem instituir diversos ônus para os empreendedores, como a destinação de terrenos públicos e a implantação de infraestrutura urbana[iv].

 

A Lei de Regularização Fundiária facilita a integração dos assentamentos informais no ordenamento territorial urbano e exige que isso seja feito mediante adequado planejamento urbanístico[v].

 

Como promover a cidade compacta

 

A recuperação do espaço público no Brasil passa por um conjunto de medidas conhecidas, mas de difícil viabilização, e por uma necessária revisão de conceitos.

 

No primeiro universo, é preciso impedir a formação de novos loteamentos e condomínios afastados da mancha urbana e baseados no automóvel particular. Para isso, deve-se limitar no plano diretor o perímetro das zonas urbanas e de expansão urbana e recusar aprovação aos pedidos de parcelamento do solo que cuja execução se revele inoportuna ou inconveniente.

 

A prioridade absoluta deve ser a ocupação dos lotes já existentes e a recuperação das áreas degradadas, de modo a se promover o melhor aproveitamento possível da infraestrutura instalada.

 

No caso dos lotes ociosos, é importante elevar a tributação sobre o valor da terra, reduzindo-se ou eliminando-se a tributação sobre a edificação, de modo a desestimular a retenção do solo como reserva de valor e a estimular sua ocupação. As áreas degradadas, por sua vez, podem demandar operações de reparcelamento do solo, de modo a gerar áreas públicas, e remembrar lotes antigos, viabilizando, assim, a construção de edifícios mais altos. Em ambos os casos, deve-se rever e possivelmente eliminar restrições à edificação que impedem a ocupação dos lotes em altas densidades e inviabilizam o transporte coletivo e a caminhada, como recuos laterais e frontais, exigência de vagas em garagens e coeficientes de aproveitamento baixos[vi].  

 

O parcelamento do solo, quando necessário, deve concentrar-se nas glebas contíguas à área urbanizada e ser conduzido poder público. Essa é uma possibilidade aberta pela Constituição e regulamentada pelo Estatuto da Cidade, por meio da conjugação de dois instrumentos: o parcelamento compulsório e o consórcio imobiliário[vii]. Pelo primeiro, exige-se dos proprietários de glebas necessárias à execução de planos públicos que promovam, individual ou coletivamente, o seu parcelamento. Pelo último, oferece-se a esses proprietários a opção de permutar suas glebas por lotes de valor equivalente, transferindo-se para o poder público a responsabilidade pela realização das obras.

 

Se a recuperação da cidade formal é uma tarefa difícil, a integração da cidade informal é um desafio muito maior. Construídos sem qualquer cuidado urbanístico ou ambiental, os loteamentos clandestinos e as favelas não apenas carecem de infraestrutura e espaços públicos, mas em muitos casos estão localizados em áreas de risco ou ambientalmente sensíveis. Independentemente das causas desse fenômeno, é preciso, antes de mais nada, contê-lo, mediante fiscalização do uso do solo e controle das concessionárias de serviços públicos, que não devem contribuir para consolidar assentamentos ilegais à revelia do planejamento urbano[viii].

 

Uma oportunidade inexplorada: o desenvolvimento urbano autofinanciado

 

As medidas propostas são viáveis apesar do contexto de crise fiscal, uma vez que o bom urbanismo gera valor em montante superior ao seu custo. O desafio, portanto, é encontrar meios de recuperação para o poder público da valorização imobiliária gerada pelas intervenções, de modo a viabilizá-las independentemente de aportes orçamentários.

 

Diversas técnicas de autofinanciamento urbano são empregadas internacionalmente e estão contempladas na legislação brasileira.

 

Em um país cujas principais cidades ainda se encontram em acelerado processo de crescimento, é fundamental que o parcelamento do solo resulte em terrenos públicos e infraestrutura suficientes para atender a população. Além dos terrenos destinados a logradouros e usos institucionais, devem ser exigidos também lotes destinados ao uso privado, que poderão ser revendidos no mercado ou incorporados à política habitacional.

 

Nas áreas que demandem reparcelamento, pode-se fazer uso de concessões a empresas privadas, habilitando-as a proceder à desapropriação dos imóveis necessários à execução do plano urbanístico, assim como oferecer aos proprietários afetados a opção de permutá-los por novas unidades a serem construídas ou por uma participação no capital do empreendimento. A empresa concessionária executaria as obras sem recursos públicos e seria remunerada pela alienação das unidades produzidas[ix].

 

Um importante elemento indutor desse tipo de empreendimento é o investimento público em transporte coletivo, como estações de metrô, VLTs ou BRTs, que exiges maiores densidades para se viabilizarem financeiramente e valorizam os imóveis próximos. Nesses casos, é possível estabelecer uma equação econômico-financeira que incorpore receitas tarifárias e imobiliárias, atribuindo-se à empresa responsável pela obra pública também a concessão urbanística do entorno.

 

O desafio da conservação: espaços públicos de propriedade privada

 

Outra dimensão que está a demandar uma mudança paradigmática diz respeito ao modelo de propriedade dos logradouros. No sistema tradicional, estes pertencem ao município e são conservados com recursos orçamentários, com exceção das calçadas, cuja conservação é atribuída ao proprietário do lote. Seja pela escassez de recursos públicos, seja pela falta de padronização e fiscalização das calçadas, o resultado tem sito o abandono e a deterioração.

É possível conceber, no entanto, um modelo alternativo, no qual os moradores detém coletivamente a propriedade dos logradouros e são responsáveis pela sua conservação, mas não podem restringir o livre acesso e usufruto por parte da população em geral. As calçadas e praças pertenceriam a um condomínio composto por todos os proprietários de lotes da quadra, mas estariam sujeitas a uma servidão instituída pelo poder público pela qual se facultaria a qualquer pessoa, moradora ou não do condomínio, circular por esses espaços e fazer uso dos equipamentos existentes[x].

 

Técnicas urbanísticas semelhantes já foram amplamente empregadas no Brasil. Em pequena escala, temos o exemplo das galerias comerciais existentes no centro de São Paulo e dos pilotis exigidos nas superquadras de Brasília.

 

Em maior escala, mas com restrições de acesso, encontramos shoppings centers, condomínios horizontais e loteamentos fechados. Embora o fechamento desses empreendimentos seja condenável, é preciso reconhecer que eles são capazes de oferecer e manter espaços abertos de excelente qualidade e sem onerar o orçamento público. As alterações promovidas na Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano em 2017 permitem que esse bônus seja aproveitado, mas exigem do poder público uma atuação incisiva no sentido de coibir o fechamento de loteamentos e de instituir servidões sobre condomínios de lotes em benefício da população em geral e da paisagem urbana.

 

Bibliografia

 

Ling, Anthony. Guia de Gestão Urbana. São Paulo, Bei: 2017.

Pinto, Victor Carvalho. Ocupação irregular do solo e infraestrutura urbana: o caso da energia elétrica. In Temas de Direito Urbanístico 5. São Paulo: Imprensa Oficial/Ministério Público do Estado de São Paulo: 2007.

- O reparcelamento do solo: um modelo consorciado de renovação urbana. Brasília, Senado Federal: 2013.

- Empreendedorismo e política urbana. Brasília, SEBRAE: 2015.

- Condomínio de lotes: um modelo alternativo de organização do espaço urbano. Brasília

 

[i] Lei 10.406/2002 (Código Civil):

“Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; (...)”.

 

[ii] Constituição Federal:

“Art. 182. (...) § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (...)

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (...).

 

[iii] Lei 10.257/2001:

Art. 46, § 1º Considera-se consórcio imobiliário a forma de viabilização de planos de urbanização, de regularização fundiária ou de reforma, conservação ou construção de edificação por meio da qual o proprietário transfere ao poder público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas, ficando as demais unidades incorporadas ao patrimônio público.

 

[iv] Lei 6.766/1979:

“Art. 7º. A Prefeitura Municipal (...) indicará, de acordo com as diretrizes de planejamento estadual e municipal: I - as ruas ou estradas existentes ou projetadas, que compõem o sistema viário da cidade e do município, relacionadas com o loteamento pretendido e a serem respeitadas; II - o traçado básico do sistema viário principal; III - a localização aproximada dos terrenos destinados a equipamento urbano e comunitário e das áreas livres de uso público; IV - as faixas sanitárias do terreno necessárias ao escoamento das águas pluviais e as faixas não edificáveis; V - a zona ou zonas de uso predominante da área, com indicação dos usos compatíveis.

“Art. 22. Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.”

[v] Lei 13.465/2017, arts. 9º e 36.

[vi] Ling (2017:33).

[vii] Lei 10.257/2001, arts. 5º a 8º e 46.

[viii] Pinto (2007).

[ix] Pinto (2013).

[x] Pinto (2017).