O ano começou com uma notícia triste para a música clássica brasileira: a morte, no final da tarde do dia 1º, do compositor Gilberto Mendes, aos 93 anos. Ele foi, desde a década de 1960 até pouco antes de morrer, uma das vozes mais lúcidas da nossa vanguarda. Criou o Festival Música Nova, que colocou novos paradigmas para a criação musical; trabalhou com os poetas concretos; flertou com as principais correntes da composição do século XX. E conseguiu, em meio a tudo isso, manter uma voz bastante pessoal, única, recusando dualidades, abraçando a contradição, e apostando em uma constante reinvenção, com o novo como norte.
Por coincidência, recebi a notícia da morte do maestro (era assim que o chamava, não sem alguma resistência da parte dele) no caminho para Santos, no litoral paulista. Gilberto Mendes correu o mundo, deu aulas na Europa e nos Estados Unidos, mas nunca deixou sua cidade natal. Era para lá que voltava, o lugar que sempre chamou de casa. Sua relutância em fazê-lo subir a serra era famosa no meio musical, quase folclórica, mas ele não ligava, contanto que pudesse, a cada final de tarde, fazer sua caminhada pela praia. Essa ligação quase simbiótica me ocorreu ao longo do trajeto para Santos no dia 1º - e me peguei pensando nos caminhos possíveis dessa relação entre a criação musical de um artista e o espaço em que ele se insere.
A Santos de Gilberto Mendes assumiu diversas formas. Eu gosto particularmente de uma cidade mítica, evocada por ele em 2012 ao publicar seu primeiro romance, Danielle em surdina, langsam. O livro, de tons assumidamente autobiográficos, narra a história de um compositor chamado Matias que, em viagem à Alemanha, relembra as descobertas de juventude feitas em Santos. Por conta do lançamento, fiz uma matéria para o Estadão, resultado de uma longa conversa com Mendes, às voltas então com suas lembranças de infância. Vai aqui uma: “A música que a gente ouvia chegava pelo rádio de Buenos Aires e Montevidéu. Eram os anos 1930. Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros compositores iam e vinham ao sabor da intermitência das ondas. Eu era moleque, ouvia fascinado, a música chegava forte e, de repente, começava a desaparecer até o silêncio completo. Mas não era ruim, ficava aquela coisa misteriosa, aquela música que aparecia e desaparecia”.
Uma música feita de sons, mas também de silêncio, complementada pela imaginação, trazida não se sabe bem como pela vastidão do oceano; o mar como metáfora daquilo que é familiar e, ao mesmo tempo, esconde um mundo desconhecido – o desconhecido que, em certo sentido, é o substrato do criador. Dos caminhos e descaminhos da memória de Gilberto Mendes, surgia uma Santos quase mítica, de sonho, uma cidade na qual ele foi colega de escola da atriz Cacilda Becker, onde passou tardes com Patrícia Galvão, a Pagu, ou descobriu o teatro de Plínio Marcos. E esse real recriado em tom quase onírico está presente em uma série de obras. É o caso de Sinfonia de Navios Andantes, baseada em texto do poeta Flávio Viegas Amoreira sobre uma tentativa absurda de proibir os apitos de navios que partem do porto – uma das lembranças mais caras da juventude do compositor. De Vento Noroeste, na qual uma melodia repetida diversas vezes sugere o “espírito desse vento que sopra quente, sobre o mar, junto às praias de Santos”. De Santos Football Music, homenagem ao mítico time de Pelé e Coutinho. Ou então da nostálgica Saudades do Parque Balneário Hotel, escrita para lembrar “o maior crime arquitetônico realizado em minha cidade, que foi a derrubada do seu mais belo hotel, em estilo Riviera italiana, pelo capitalismo mobiliário selvagem”, um espaço que, nos anos 1940, “serviu de ponto de encontro com meus amigos, onde ouvíamos a melhor música popular, pela orquestra de Oswaldo Norton e pelo pianista Robledo, que eu penso ter introduzido no Brasil o estilo moderno que já apontava para Oscar Peterson” (veja aqui vídeos com alguns trabalhos do compositor).
Mas há obras em que Mendes fala de uma outra paisagem, talvez mais concreta. É o caso de Vila Socó Meu Amor, criada sob o impacto do trágico incêndio que matou quase 500 pessoas em 1984 em Vila Socó, na cidade vizinha de Cubatão, “transformando pessoas em cinzas, lixo em pó, mostrando que o trabalhador é explorado, esmagado sem nenhum dó”. Ou de Último Tango em Vila Parisi, que evoca o bairro operário também conhecido como Vale da Morte. Os títulos das peças são testemunhos da paixão do compositor pelo cinema, evocando dois clássicos: Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais, e Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci. E são símbolos do engajamento político do autor, sua relação com o Partido Comunista, já caminhando em direção a uma outra Santos, ao microcosmos da cidade portuária, da condição do estivador – e, nesse sentido, vale registrar o recente lançamento, pela Edusp, de uma nova edição de Navios Iluminados, contundente relato de Ranulfo Prata sobre os sonhos e tragédias de um trabalhador do porto, escrito em 1937.
Depois de tantas histórias e músicas, em que a experiência pessoal local serve de ponto de partida para uma linguagem que se pretendeu sempre universal, a pergunta volta à cabeça: como se dá a relação entre a criação musical e uma cidade? O pesquisador Márcio Bezerra oferece uma resposta, quando, no livro A Unique Brazilian Composer sugere uma guinada estética de Mendes nos anos 1980 provocada pela “interação do compositor com uma mitologia pessoal de seus anos de formação”. Mas, relendo a autobiografia Uma odisseia musical, redescobri esses pequenos versos: “Santos, muitas cidades/Numa só cidade, na minha cabeça…/Como a minha música!”. É uma boa resposta, dada pelo próprio compositor.