Artigo | Marcelo Moscheta: Relato de uma expedição no Rio Tietê

Artista faz diário da viagem que compôs a exposição 'Arrasto', em cartaz na Casa do Bandeirante
09/11/2015
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Viajante inveterado, Marcelo Moscheta faz instalações, desenhos e fotos que nascem de suas andanças. Entre março e agosto de 2015, o artista percorreu toda a extensão do Rio Tietê, desde sua nascente em Salesópolis até a foz no Rio Paraná, coletando rochas, argilas, areias e minerais de suas margens. O resultado se encontra na instalação Arrasto, em cartaz na Casa do Bandeirante, em São Paulo, até 19 de dezembro. No texto a seguir, Marcelo Moscheta apresenta um relato da expedição: "Ao longo desses meses, aprendi a amar o Tietê, a contar as suas histórias e me admirar com cada gota de vida que via se oferecer a mim generosamente. Do pó das margens aos barrancos de argila vermelha e amarela, sou minério e água, sedimento e barro", descreve o autor. Leia o texto na íntegra:

Arrasto
Por Marcelo Moscheta

Salesópolis, 16 de março - Encontro com o Rio Verdadeiro brotando de um pequeno olho d’água no chão, em meio à Serra do Mar. Encontro com ele inúmeras vezes depois, em estradas vicinais que margeiam seu curso, em pontes que cortam seu fluxo, em beiras de matagais, em calçadas de avenidas, ao fundo de condomínios, em praias de areia grossa e balsas de passo lento. Em usinas hidrelétricas e em fotos de cahoeiras que já não existem mais. Em pinturas do século 19 e em placas de beira de estrada. Transformação - acúmulo - vazão - fluxo: eu como um rio.

Guarulhos, 17 de março - Faço uma visita à Usina Parque, em Salesópolis, onde tenho uma grata surpresa ao subir os inúmeros degraus e constatar a beleza da serra, tão úmida, cheia de líquens, e a altura da queda d’água, a primeira barragem do Tietê. Depois, no trecho até São Paulo, a natureza fica cada vez mais domesticada, represada e poluída. As hortas de Biritba-Mirim e Mogi das Cruzes lançam seus produtos tóxicos nas águas do rio, que segue seu percurso num banhado que se abre cada vez mais.

Santana do Parnaíba, 18 de março - Revelações da história do rio acontecem no Museu do Parque Ecológico do Tietê. Andar de bicicleta pela margem do Tietê em São Paulo foi surpreendente! Aproveitei e fiz algumas coletas, não muitas, mas o suficiente para se pedalar com alguns quilos a mais nas costas.

Itu, 19 de março - A ideia de se ter o desenho de uma cachoeira que foi destruída por barragens e represas começa a tomar forma -  o domínio do homem sobre a natureza, a domesticação do perigo, do “rio inavegável” e os fantasmas que habitam nas profundezas dos lagos represados… fantasmas de um rio imaginário, que corre ao contrário, que mudou de nome e que ainda se revolta com os homens quando de suas enchentes! Tantas histórias fascinantes como os “Anhangueras”, Fernão Dias e inúmeros outros bravos e rudes de outras épocas, servidores da coroa portuguesa que conquistaram o território a duras penas e incontáveis mortes e escravidões. 

Continuo a viagem pelo rio podre, que morreu a muito e que agora prenuncia o fim do mundo com suas espumas brancas e malditas, fedorentas, cheias de merda e toda espécie de malícia produzida pelo homem. O rio, em sua revolta, nos devolve o descarte nele jogado; nada sai barato. E assim ele segue num cortejo fúnebre, passando por Pirapora do Bom Jesus e Cabreúva, até chegar em Itu, num desfile monótono em que o contraste da beleza das margens verdes e vivas, da memória caipira paulista, da fé, dos romeiros, das primeiras usinas hidrelétricas finge que não vê o doente moribundo, arrastando-se melancólico com suas garrafas plásticas a apontar o sentido da corrente. Sigo coletando pedras e memórias. Eu, num arrastar-me pelas bordas, a sangrar as margens, a subtrair séculos plasmados nas pedras e a deslizar comigo no fluxo da jusante, o que a própria vida oferece a quem dela se aventura - resistência, vida e morte.

Porto Feliz, 5 de junho - Começo o dia no Parque do Varvito olhando rochas milenares alinhadas e dobradas sobre a superfície do planeta, e passo depois pela Rocha Moutounée, a mais antiga rocha do Brasil. Antes de acontecer um rio, já haviam suas margens. A poluição continua a desafiar o bom senso em Salto, desaguando espuma fétida ao invés de água viva, sujando o ar com sua presença cândida mas mortal. Mesmo assim, Salto é uma das poucas cidades até agora que não volta as costas ao rio, como se quisesse dele se esquecer. Ao contrário, cria em suas margens um memorial em sua homenagem e à história das Bandeiras e monções que tanto fizeram por estas cidades… Itu, Salto, Porto Feliz e Tietê.

Tietê, 6 de junho - O rio que corre arrasta consigo inúmeras quantidades de material; as margens que “sobram” arrastam para si o rio que tenta passar. Acredito que recolho aqueles pedaços que foram forjados na luta dos elementos e que a venceram. Eles permaneceram como parte do que define o rio, o seu trajeto, o seu limite e a sua borda. 

Nas barrancas salitrosas de Porto Feliz, um batelão de 9 metros transpira placidamente numa caixa de vidro longe do rio, o seu propósito de existir. O porto que era feliz hoje não parece nem triste nem ansioso pelas barcas que saem pelo país adentro. Mas, mesmo assim, me emociono com as histórias de coragem e com a lenda da pedra do Curuçá. Afinal de contas, ser barranco é ser apoio, é resistir, é delimitar e domar. E isso é muito nobre.  Ser rio, por outro lado, mais do que ser água corrente, é ser um estado de espírito.

Barra Bonita, 7 de junho - No distrito de Laras, encontro com margens que ainda não se alargaram. Depois chego a Anhembi e vejo o rio participando da vida de seus cidadãos de forma saudável, no primeiro balneário do caminho. A frustração da estrada de terra que peguei para encurtar o caminho foi recompensada chegando em Igaraçu do Tietê e à vista da barragem de Barra Bonita.

Ibitinga, 8 de junho - Canaviais e balsas participaram do roteiro de hoje; suas presenças marcantes na paisagem são extremos de um aproveitamento pacífico de um rio vivo. O uso consciente e ecológico da água para o transporte e o lazer e a sua importância no agronegócio, que também a polui e destrói. Faces de uma simbiose difícil de resolver, mas com décadas de convívio resignado. Minhas margens ficam mais arenosas, mais suaves. Todos os saltos que aqui haviam foram inundados pelas barragens e represas. Margens móveis, elásticas, mutantes da paisagem.

Sales, 9 de junho - Um rio gigante em Pongaí me deixa com os olhos marejados. Caudaloso, ele se impõe; majestoso, avança para além da vista. Em Sales, encontro uma cidade tranquila e prazerosa à beira d’água. Penso que todo rio anseia o Oceano, mas nem todos se tornam grandes antes do encontro. Tenho os olhos fartos de tanta água que se arrasta por entre as margens.

Penápolis, 24 de agosto - Pedra, areia e argila abundam nas praias de Sabino e Sales. Moles margens melancólicas. Atravesso talvez a última balsa. 30 minutos numa imensidão de água. Nem parece o mesmo rio que vi sair da terra em Salesópolis… e talvez nem seja mesmo. Margens generosas hoje me deram pedra e areia. Em Adolfo, peguei muitos seixos no atracadouro; embaixo da ponte em Promissão, mais algumas outras tantas. Tudo está seco, árido, ventoso e poeirento. Aqui tudo é um pouco mais pobre e decadente. Às margens da Rodovia Transbrasiliana, uma tempestade de pó sobe dos canaviais e deixa a vista turva, assim como um rio muitos quilômetros atrás.

Araçatuba, 25 de agosto - No museu de Penápolis, gasto minha manhã atrás de imagens do Salto do Avanhandava e da história do próprio Rio Tietê e assim defino a imagem que servirá de base para o desenho. Prainhas são sinais de que o acesso ao rio é garantido. Estar debaixo das pontes e rodovias que cortam o rio é estar no entremeio de horizontes líquidos e alargados.

Araçatuba, 26 de agosto - Tiro o dia para arrumar as fotos, textos, reler os diários e planejar os próximos passos… o fim se aproxima e eu, na expectativa do encontro com a foz.

Pereira Barreto, 27 de agosto - Sob a ponte da SP463, encontro a prainha municipal de Araçatuba, que me oferece boas fotos antes da chuva, algumas coletas e a surpresa de ver o estaleiro a poucos quilômetros adiante! Consigo almoçar em Auriflama e sigo o velho oeste paulista passando por Dallas.

Encontro uma ponte em Cesaria, onde pescadores se apoiam e parecem não pegar nada. Desço ao rio, coleto e fotografo árvores mortas há tempos, mas ressurgidas com a estiagem. Me incomoda a quantidade de lixo, garrafas plásticas deixadas pelos próprios pescadores que prosseguem numa atitude predatória, emporcalhando o próprio rio que lhes dá a satisfação da pesca.

Tudo é vermelho, barro e argila no solo fértil de Sud Mennucci. A devastação causada pelos imensos canaviais e usinas tinge a vista dos olhos. Terra, argila, poeira, barro e pó. Chão batido centenas de vezes até virar sangue.

Causa espanto para quem vê pela primeira vez o grandioso canal que liga a Represa Três Irmãos no Tietê à represa de Ilha Solteira. Em Pereira Barreto, cisnes e peixes de fibra de vidro olham catatônicos a represa, numa coisa meio jeca, meio saudosista. A própria cidade é estranha, bizarra nos seus monumentos, sem a personalidade que se vê nas fotos do passado e da Ponte Novo Oriente, símbolo náufrago da glória pretérita daqui. Quanto mais o rio cresce, mais parece engolir tudo à sua volta.

Itapura, 27 de agosto - Chego a Itapura, no final do trajeto. 2055 quilômetros rodados ao longo do curso do rio Tietê. Procurei coletar rochas na maioria das vezes; quando não era possível, trazia areia, argila ou algum outro mineral que estivesse na margem do rio, independente da sua condição endêmica à margem - se estava ali, participava de certa forma da condição de rio. Pedaços retentivos, limitadores daquilo que é fluído, que corre, que deságua.

As margens se alargam e retraem conforme o humor das águas. Emociono-me com a dimensão que o rio toma durante o seu curso; de um fino olho d’água no chão, torna-se o mais importante rio dos paulistas, contribui também para o engrandecimento de outros rios e recebe de inúmeros outros a porção de água que o faz grande e imponente. Suas margens foram barradas, represadas e continuam sendo progressivamente saqueadas por todos nós! Lixo e descaso público o condenam a morrer dia após dia, até que tudo se transforme como na capital, com o próprio esgoto sendo chamado de rio.

Ao longo desses meses, aprendi a amar o Tietê, a contar as suas histórias e me admirar com cada gota de vida que via se oferecer a mim generosamente. Do pó das margens aos barrancos de argila vermelha e amarela, sou minério e água, sedimento e barro. E assim finalizo a última coleta nas margens do Tietê, tendo a jocosa caixa d'água em meio ao próprio rio, como se pudesse me advertir que todo esforço será inútil e que é preciso mais do que uma vida inteira para se contar a história de um rio, pois ele nunca é um só, e nunca será sempre o mesmo, assim como todos nós.

* Texto originalmente publicado para o Projeto Arrasto, realizado no primeiro semestre de 2015 através da Bolsa Estímulo à Produção em Artes Visuais/Funarte 2014.

INFORMAÇÕES
Arrasto, de Marcelo Moscheta
Data: em cartaz até 19 de dezembro
Local: Casa do Bandeirante (Praça Monteiro Lobato, s/n, Butantã, São Paulo). Entrada franca