Fernando Serapião | Impasses da habitação social de SP

Apesar do Plano Diretor progressista, gestão de Fernando Haddad derrapou na vala comum do Minha Casa, Minha Vida
21/10/2015
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As manchetes da Folha de S.Paulo de 24 de setembro destacaram mais um capítulo da atual crise brasileira, tendo como pano de fundo a repercussão da Operação Lava Jato. Do lado político, a notícia principal foi a promessa presidencial de entregar ministérios ao PMDB para reestabelecer a governabilidade; do lado econômico, o jornal registrou mais um dia de nervosismo do mercado financeiro, com o dólar batendo R$ 4,15. Duas fotos justapostas de outras notícias completavam o layout da primeira página: a cena de uma manifestação de sem-terra em frente ao Ministério da Agricultura e uma imagem de um canteiro de obras paulistano. Neste caso, a reportagem de Giba Bergamim Jr. questionou as metas de unidades de habitação de interesse social traçadas pelo prefeito Fernando Haddad (PT).

O texto informou que, faltando um ano para terminar o mandato, Haddad entregou cerca de 15% das 55 mil unidades prometidas. A matéria ouviu o poder público, que justificou o fogo-amigo: o repasse do governo federal, liderado pelo seu partido, estacionou na casa de 11% do esperado. O texto também expôs o abandono de canteiros de obras e questionou a base de dados do governo, pois conjuntos classificados pela administração como "obras em andamento" estavam paralisados. A seção de cartas da edição do dia seguinte trouxe a resposta do porta-voz do poder público com temperos políticos. Para a prefeitura, a Folha mais uma vez errou "ao qualificar como municipal um problema nacional".

Contudo, nem a reportagem nem a carta revelaram que a notícia refletiu o pano de fundo da mudança na gestão da habitação social no município: muito antes dos pífios repasses federais servirem como desculpa para o fracasso, Haddad modificou a estratégia elaborada pela gestão anterior – de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) –, aclamada por especialistas dentro e fora do Brasil. O sucesso, orquestrado pela arquiteta Elisabete França, baseou-se na valorização de projetos de arquitetura potencializada pelo aumento de 12 vezes da verba da pasta, através da articulação de recursos municipais, estaduais e federais. Envolvendo dezenas de destacados arquitetos, o programa se notabilizou pela urbanização de favelas, como as realizadas por Héctor Vigliecca (em Santo Amaro e Heliópolis) e de regularização de loteamentos clandestinos, exemplo do Cantinho do Céu, desenho criado por Marcos Boldarini.   

Virando o leme da condução assertiva da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), Haddad desceu uma corredeira perigosa ao entrar em sintonia com Brasília e entregar a pasta ao Partido Progressista (PP), de Paulo Maluf, que coordena o Ministério das Cidades desde o governo Lula de maneira desastrosa – ao menos no que se refere à visão urbanística e arquitetônica. Já no início do mandato, a ordem era potencializar a política do programa federal Minha Casa, Minha Vida (MCMV) contribuindo para aumentar os dados da planilha federal. Afinal de contas, a escala paulistana ajudaria o partido a atingir as metais do governo Dilma. Haddad nomeou como secretário o engenheiro Marques Neto, um construtor de pequenos conjuntos populares no interior paulista que usava créditos do MCMV e era próximo ao então ministro. Quando ele assumiu a pasta, ouvi relatos de diversos arquitetos do susto que o secretário levou com os honorários de projetos em andamento, com centenas de unidades: ele teria dito que, com a mesma verba dos projetos, executaria uma obra inteira. Ao ser questionado sobre o Cantinho do Céu, em entrevista à revista Época, ele afirmou que a ideia era continuar essa urbanização: "As unidades eram feitas com recursos do PAC, agora também vão ser feitas com recursos do Minha Casa Minha Vida".

Ocorre que o MCMV é um programa de crédito imobiliário subsidiado pelo governo central que delega estratégias e projetos à iniciativa privada. O ponto negativo desse aparente liberalismo se evidenciou com a construção de conjuntos inóspitos, sem espírito público e que materializam desejos de mercado maléficos à democracia. Grosso modo, os construtores – assim como o atual secretário – não enxergam essa ótica, uma vez que seu principal objetivo é transformar o subsídio público em lucro. O problema está com o governo central que, na ânsia de obter resultados imediatos, não exige parâmetros mínimos de qualidade urbanística, arquitetônica ou até construtiva. Exemplos? Não se exige industrialização, eficiência de desenho e chega-se ao extremo de adotar a lógica dos condomínios fechados, que criam guetos urbanos financiados com dinheiro público.

Por outro lado, pela própria lógica privada, o MCMV tem dificuldade em urbanizar favelas dada a questão fundiária. Outro ponto negativo do programa é ser refém do preço da terra, o que inviabiliza sua utilização em áreas centrais, ajudando a empurrar a população ainda mais a zonas periféricas, onde os lotes são mais baratos. Além de contrariar os movimentos sociais por moradias e contradizer o que propõe o Plano Diretor progressista aprovado pela gestão Haddad – que enfatiza a ocupação de áreas centrais para a habitação social –, a utilização do programa federal em São Paulo potencializará problemas ambientais, ao incentivar grandes conjuntos em áreas de mananciais, como o controverso Parque dos Búfalos. 

Seja como for, os 15% de unidades até agora entregues por Haddad são de projetos propostos pela gestão anterior e por isso apresentam desenhos de qualidade (ao que tudo indica, para o bem ou para o mal, ele não terá tempo para entregar o que foi elaborado por sua administração). Entre os destaques estão a gleba desenhada por Biselli Katchborian Arquitetos, em Heliópolis, e a reurbanização da favela do Sapé, no Butantã, realizado por Catherine Otondo, Jorge Pessoa e Marina Grinover – duas notáveis realizações geridas por Elisabete França, que hoje dá expediente na Cohab, do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Se o projeto de Heliópolis (com 2,46% dos apartamentos entregues por Haddad) tirou partido da topografia para adensar a ocupação sem a necessidade do elevador, no Butantã os arquitetos criaram um parque linear com ciclovia, retirando habitações precárias de cima do córrego, reurbanizando a comunidade e construindo 3,8% das unidades entregues pelo prefeito.

Lamentavelmente, muitos projetos da gestão de França foram engavetados. Entre as obras que engatinham – cujos "esqueletos abandonados" estamparam a reportagem da Folha – estão duas com grande visibilidade urbana e arquitetônica. Refiro-me aos conjuntos do Jardim Lidiane e da Ponte dos Remédios, às margens do rio Tietê. O primeiro, próximo à ponte Júlio de Mesquita Neto, foi desenhado pelo premiado escritório Andrade Morettin. Para os projetistas, "o projeto assume como ponto capital a criação de espaços públicos de qualidade, que extrapolam os limites do edifício e geram em seu entorno melhorias para toda a comunidade". O segundo conjunto saiu da prancheta de um dos mais aclamados arquitetos brasileiros em atividade, Marcos Acayaba – em parceria com H+F Arquitetos. A proposta ocupa o terreno de uma antiga siderúrgica e, além dos prédios de apartamentos, mantém um dos galpões industriais como centro comunitário.

A notável arquitetura de ambos contrastam com as péssimas soluções do MCMV mas, paralisadas, elas sofrem com pichações e vandalismos. Por uma armadilha do destino, o conjunto da Ponte dos Remédios, que certamente seria um marco da arquitetura brasileira no que diz respeito à qualidade de habitação social do século 21, é vítima da recuperação judicial da Schahin, arruinada por seu envolvimento na Operação Lava Jato. Infelizmente, do ponto de vista urbanístico e arquitetônico, a lucidez da gestão Haddad na Secretaria do Desenvolvimento Urbano – principalmente com o novo Plano Diretor – contrasta com os equívocos de sua atuação na Sehab. Independentemente de ter ou não ter verbas, de realizar ou não, o prefeito avançou quando foi independente e nomeou o arquiteto Fernando de Mello Franco; mas o mandatário retrocedeu quando seguiu a orientação do partido, empurrando a dignidade dos avanços da habitação social de São Paulo para a vala comum do MCMV.