João Luiz Sampaio | Falando de música, mas não só

Coletivo de compositores do Paraná investe na criação contemporânea – e em uma nova relação com o espaço urbano
24/09/2015
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Em uma noite fria do final de agosto, o antigo prédio da Universidade Federal do Paraná, no centro de Curitiba, transformou-se em "um parênteses no espaço e no tempo". Às 20 horas, pontualmente, começou a soar nos saguões do segundo e do terceiro andares a obra Thirteen de John Cage. Minutos depois, a música já surgia de todos os cantos – ao mesmo tempo. Quatro pequenas orquestras se dividiam em cinco salas do prédio, construído no início do século 20; um grupo de nove músicos espalhava-se por diversos espaços, do porão ao terceiro andar, interpretando cada um uma miniatura musical, uma peça breve. E o público era convidado a percorrer esses ambientes, descobrindo linguagens, propostas estéticas e recantos diferentes.

Foi com esse concerto que se encerrou a terceira edição da Bienal Música Hoje, realizada em Curitiba pelo coletivo entreCompositores. O grupo é formado por cinco integrantes: Márcio Steuernagel, Fernando Riederer, Lucas Fruhauf, Vinicius Giusti e Luiz Malucelli. Todos se formaram na cidade; alguns ficaram por lá, outros radicaram-se na Europa, em países como Alemanha, Áustria e Suíça. Mas, a cada dois anos, eles se encontram para uma programação musical que celebra a criação contemporânea, misturando os clássicos modernos do século 20 à obra de autores que, hoje, seguem reinventando nosso conceito de música e de escuta.

A experiência do entreCompositores criou um trabalho em rede que faz de Curitiba um centro de referência na criação musical contemporânea. Em diálogo com uma presença universitária forte, simbolizada pela atuação dos compositores e professores Maurício Dottori e Harry Crowl, outros dois coletivos de autores foram criados: o Núcleo Música Nova, também composto por artistas entre os 30 e 40 anos de idade, e o Círculo de Invenção Musical, com membros uma década e meia mais novos. Gerações se unem em torno de um objetivo comum, a exploração de novos territórios artísticos – e, nesse processo, nessa nova proposta de trabalho em forma de diálogo, soma-se à investigação artística uma discussão sobre o próprio papel que a música e arte podem ter na vida social e cultural de uma comunidade.

Uma das marcas da nova música é o modo como ela pode assumir diversas formas. Em Estudo nº 1 para dançarina e quarteto, de José Luis Manrique, uma das obras apresentadas na edição deste ano, por exemplo, uma pequena orquestra de câmara era regida pelos movimentos de uma bailarina que, no centro do palco, improvisava uma coreografia na qual cabia aos músicos identificar referências de andamentos ou dinâmica. Nesse distanciamento do formato tradicional associado à música dita "clássica", há uma questão de fundo: a busca por novas maneiras de se perceber o som – e com ele se relacionar. "Existem muitas música novas. E se há nelas algum elemento comum é justamente a exigência de que o ouvinte se aproxime delas com curiosidade e generosidade, pois não sabe de antemão o que vai encontrar. O maior desafio para criar uma relação do público com a criação contemporânea é levá-lo a adotar uma postura engajada, de protagonista da fruição da obra", diz Steuernagel.

O compositor está de falando de música – mas não só.

Em um mundo que se transforma rapidamente (com um inerente sentimento de insegurança e dúvida), orquestras sinfônicas, de certa forma, são um elemento de permanência. Elas recriam um cânone musical que ultrapassa o tempo e se mistura à própria história do Ocidente. Salas de concerto, assim, podem ser entendidas como a representação arquitetônica de um certo ideal de excelência cultural. A forma, que é nova, se presta à recriação de um ritual, como passou a ser entendida a experiência do concerto. De alguma forma, porém, essa dinâmica congelou no tempo a atividade musical. Em outras palavras, a questão que se coloca hoje, com certa urgência, é: se a música tem algo a nos dizer sobre nosso passado e presente, o que o nosso tempo pode oferecer em termos de perspectivas para o futuro da música clássica?

São muitas as respostas possíveis. Mas uma delas se coloca de forma clara: a necessidade de desmistificar o rito do concerto e a compreensão de que isso passa por uma nova relação com o espaço – e a cidade. É nesse contexto que se insere o concerto de encerramento da bienal de 2015. Toda a música produzida era captada por microfones, manipulada em uma mesa de edição e transmitida, em tempo real, para o lado de fora do prédio, por meio de alto-falantes dispostos na Praça Santos Andrade. Ou então um concerto realizado na edição de 2013 do evento. Nele, músicos e público deixavam o teatro e se instalavam na calçada, onde era interpretada a peça Rua Quinze de Novembro, de Peter Ablinger. Em uma esquina, os metais; na outra, as cordas; entre eles, as madeiras. O barulho dos carros dificultava a audição, mas a proposta era essa. Para o público, refletir sobre a nossa capacidade de ouvir; para os músicos, a tarefa de dialogar com os ruídos do espaço urbano, tocando mais forte ou mais fraco de acordo com a necessidade.

No primeiro caso, a música se mistura de forma indistinta à paisagem urbana. No segundo, está atenta aos estímulos do ambiente que a cercam. Ainda que de forma simbólica, são duas formas de pensar a necessidade da música clássica, criada em qualquer época, de se aproximar da comunidade em que está inserida, fazendo do espaço do concerto parte de um tecido mais amplo de experiência coletiva. Steuernagel, não por acaso, lembra Stravinsky e sua Poética Musical: música não é comunicação, mas comunhão. "O grande público ficou tão grande que ele não mais existe. Os estádios lotados pertencem ao campo da homogeneização, e isso parece cada vez mais distante da natureza da arte, cada vez menos atraente, por ser ‘des-humano’. Ainda mais em tempos como os nossos, de assustador ressurgimento das mentalidades polarizadas, organizadas em grandes blocos homogêneos – e antagônicos entre si. É nesse sentido que precisamos de arte nova, individual. Pela sua multiplicidade, a arte nos humaniza."

Ele, de novo, está falando de música. Mas não só.