A relação entre o passado e o presente no mundo da música clássica é, para dizer o mínimo, conflituosa. Isso vale para o repertório, com uma difícil convivência no gosto do público, e para os programas de concertos, entre o chamado cânone tradicional e a criação mais recente. Mas vale também para o próprio ritual do concerto, ainda calcado no modelo do século 19. Sobre esse tema, os debates costumam terminar na defesa quase histérica de um passado a ser preservado quando se discute novos formatos de apresentação e de relação com o público, como se o questionamento a respeito dos sentidos da música em nossos dias fosse uma afirmação automática da sua falta de sentido. Não deveria ser. E não é.
Por isso é interessante que essa relação entre épocas estivesse no cerne de um projeto arquitetônico batizado de Praça das Artes, localizado na região central de São Paulo, nas proximidades do Theatro Municipal, ao qual o complexo esteve conceitualmente ligado desde cedo. O projeto da Brasil Arquitetura, de Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, foi construído em um terreno na forma de “T” que liga a Rua Conselheiro Crispiniano à Avenida São João e o Vale do Anhangabaú. Com o propósito de se ligar à cidade de uma maneira orgânica, é uma mistura de edifício e praça. E foi construído em torno do prédio do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, restaurado e integrado à estrutura mais ampla do complexo, que tem um total de 29 mil metros.
A incorporação do prédio do Conservatório é um ponto chave. A instituição foi criada em fevereiro de 1906 e a sede, construída em 1909. Por lá passaram nomes como João Gomes de Araújo, Francisco Mignone ou Mário de Andrade, que criou conjuntos como o Coral Paulistano e o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, responsáveis pela programação da sala de recitais. O palco também recebia artistas convidados, saraus de poesia e palestras nas quais se forjou uma cena musical paulista e se propôs discussões estéticas que pautariam o trabalho de importantes compositores, como é o caso de Camargo Guarnieri. Desde os anos 1980, o prédio foi desocupado. E acabou vazio, com apenas a ação do tempo como companhia. Até que em 2006 surgiu o projeto da Praça das Artes, inaugurado parcialmente em 2013.
O nascimento da Praça das Artes esteve ligado ao Municipal de modo quase indissociável. Primeiro, porque boa parte de suas instalações serviriam para abrigar salas de ensaios das orquestras e corais da casa, deixando o palco do teatro livre para um maior número de apresentações. Da mesma forma, a praça seria a casa das escolas municipais de música e dança, também ligadas institucionalmente ao Municipal, cuja equipe administrativa também passaria a ocupar as novas dependências. Além disso, a inauguração da praça ocorreu no mesmo momento em que a Câmara Municipal aprovava um polêmico projeto de lei que criava uma fundação responsável pela gestão do teatro, seus prédios físicos e corpos artísticos. E o fato é que, em meio a discussões institucionais e políticas, a função da Praça ficou em segundo plano.
Ora, um prédio está naturalmente associado à função que desempenha. Ser um ponto de apoio ao Municipal é uma delas (ainda que as salas de ensaio não tenham ficado prontas e uma segunda fase das obras não tenha data para ser entregue). Mas parece pouco. De forma que o desafio do complexo passou a ser, na verdade, encontrar uma vida própria, mesmo que em diálogo com o teatro – em especial em um momento no qual, seja pela crise, seja pela flagrante crise administrativa que o projeto de fundação parece ter sido incapaz de resolver, a temporada lírica do Municipal ainda não chegou perto dos ambiciosos planos anunciados não muito tempo atrás.
Por enquanto, ao menos, esta identidade própria tem sido buscada. E é interessante observar os caminhos dessa ocupação. Abrigar as escolas de música e bailado, por si só, sugere uma atenção especial à formação artística. Não por acaso, a Praça passou a ser sede dos conjuntos sinfônicos ligados à escola, como as orquestras infantil, jovem e Experimental de Repertório. Mas apostar em formação também é discutir o modo como se forma hoje um jovem músico. Nesse quesito, o repertório é um ponto de referência obrigatória. E é bom ver que a música de novos compositores, inclusive com encomendas, tem feito parte dos programas apresentados pelos grupos. A sala do conservatório também ganhou uma série de música contemporânea, além de uma dedicada à música de câmara, em que os integrantes da orquestra profissional do teatro podem trabalhar programas e exigências técnicas e de expressão diferentes.
Para a sala, voltaram também o Quarteto da Cidade e o Coral Paulistano, com séries próprias. E, recentemente, o prédio abrigou, em parceria com o British Council, um curso dedicado à formação de novos líderes e gestores para o setor. A grade curricular da escola também ganhou projetos importantes. Foi criado um Opera Studio, fundamental em uma instituição ligada a um teatro de ópera, ainda mais quando tocada a partir de uma nova compreensão da carreira do cantor. Revitalizou-se um núcleo dedicado à música antiga. E nasceu um Ateliê de Criação Contemporânea, que articula um maior contato entre compositores, instrumentistas e bailarinos das escolas.
São projetos que, aos poucos, vão ganhando forma, sem grande alarde, mas com efeito que se propõe duradouro. Como um espaço arquitetônico cuja vocação é se abrir para a cidade, a Praça das Artes tem sido ocupada por uma compreensão ampla do fazer artístico, fazendo de seu cotidiano a quebra de barreiras. Um concerto com obras novas, recém-compostas, pode ter como pano de fundo a centenária sala do Conservatório, da mesma forma que a música do século XIX é tocada ao ar livre, com os traços arrojados do prédio a ressignificá-la. Se há nisso alguma contradição, ela é mais do que necessária. Mas talvez não haja nenhuma. Afinal, não estamos mais falando apenas de passado e de presente, mas, sim, de futuro.
Passado, presente e futuro no Conservatório de São Paulo
10/05/2016