Vila Flores, núcleo de resistência no 4º Distrito de Porto Alegre

João Felipe Wallig conta a história da revitalização do complexo arquitetônico concebido pelo alemão Joseph Lutzenberger
16/09/2015
Compartilhar:

Por João Felipe Wallig

Vila Flores é um centro cultural multifuncional situado em um complexo arquitetônico histórico em Porto Alegre. Hoje o espaço abriga espaços para exposições e escritórios para profissionais da indústria criativa, acolhendo mais de 20 iniciativas em diversas áreas da cultura: arquitetura, artes, design, educação, gastronomia, moda e tecnologia.

O complexo arquitetônico está no bairro Floresta, no chamado "4º Distrito", e é formado por dois prédios de três pavimentos, um galpão e um pátio interno, contando com 2.332 m² construídos em um terreno de 1.415 m². As edificações são parte do Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Bairro Floresta, inseridas em área de interesse cultural da cidade e listadas como imóvel de estruturação. Originalmente desenhado pelo engenheiro e arquiteto alemão Joseph Franz Seraph Lutzenberger, o projeto foi construído pela multinacional Dyckerhoff & Widmann no fim da década de 1920 para funcionar como casas de aluguel para operários.

A história do Vila Flores começou em 2009, após a divisão de bens do espólio da família, que nos deixou (para mim e para minha irmã) esse complexo arquitetônico. Há seis anos, quando começamos a pensar em reformar esse antigo imóvel, inteiramente degradado, podíamos prever o potencial do projeto, mas não ousaríamos sonhar com tantos desdobramentos que a empreitada traria para nossas vidas e para a cidade.

Juntando conhecimentos e áreas de atuação familiar, conjugamos fatores técnicos e empíricos, estudos e levantamentos com setor imobiliário, engenheiros, vizinhos, empreendedores e poder público – e compreendemos a importância arquitetônica, cultural e histórica da construção. Encontramos estudos feitos por Lutzenberger, responsável por outros projetos de grande relevância para a cidade, como a Igreja São José, o Palácio do Comércio e o Instituto Pão dos Pobres, entre outros. Descobrimos que a construção estava registrada em 1928 e que já existiam trabalhos acadêmicos pensados a partir dessas edificações.

O estalo: compreendemos que um projeto de preservação e readequação do uso dos edifícios teria uma importância irradiadora para uma região que precisava recuperar sua vitalidade e ressignificar seus inúmeros espaços vazios para voltar a ser uma área econômica e culturalmente ativa e, por consequência, mais segura e atraente para a cidade. Muito mais que simplesmente remover edifícios e dar espaço para a especulação imobiliária construir um edifício verticalizado, como muitos consultores nos apontaram como único caminho, estávamos certos de que um percurso mais longo, e trabalhoso, traria maiores benefícios tanto para o patrimônio material quanto imaterial que se encontrava ali.

Ao lado dos vizinhos Navegantes, Humaitá, Farrapos e São Geraldo, o bairro Floresta compõe o 4º Distrito de Porto Alegre – vale frisar, porém, que existem diferentes recortes para delimitar a área, que teve seu período áureo na primeira metade do século 20, quando as principais indústrias do Rio Grande do Sul se instalaram. Indústrias de fundição, metalurgia, têxtil, silos e armazenamento de grãos, entre outras atividades, concentraram boa parte do PIB da região. Na época constituiu-se um rico patrimônio arquitetônico (eclético e art-déco): fábricas, galpões e habitações operárias compunham um cenário multiétnico de grande vitalidade.

A partir da década de 70, as indústrias começaram a migrar para terrenos mais distantes e outros cantos do Estado, num processo que deixou muitas construções inutilizadas, muitas ainda vazias. Após meio século desse boom industrial, a região viu a degradação tomar conta de suas ruas e vivenciou o afastamento gradativo da vida urbana. Preservou, entretanto, bastante de seu caráter residencial, abrigando ainda pequenos comércios que atendem a moradores. A noite se torna a cena mais conhecida da prostituição de Porto Alegre, em grande parte aliada ao tráfico de drogas, o que gera insegurança à comunidade.

Esse processo é recorrente em outros contextos urbanos, mas o êxodo de áreas industriais pode ser revertido a partir do momento que artistas e empreendedores voltam a buscar essas regiões, atraídos por amplas construções desocupadas e aluguéis baratos para instalar seus negócios. Há aspectos positivos e negativos nessas revitalizações urbanas: positivos, pela valorização de pequenos empreendedores e artistas locais, também pela reutilização de estruturas arquitetônicas saudáveis subutilizadas; negativos, por certos processos avançados de "revitalização" acelerarem processos de gentrificação e especulação imobiliária.  

Pesquisamos bastante sobre o surgimento da economia criativa e como esse conceito vem sendo desenvolvido no Brasil. Vimos que esse viés da economia estava ganhando espaço e que havia iniciativas se instalando na região. No paralelo, o poder público planejava criar ações com intuito de incentivar atividades que caminhem nesse sentido. Foi assim, buscando uma compreensão mais ampla do contexto urbano, que se iniciou o projeto de readequação dos edifícios.

PREDINHOS DE LUTZENBERGER

Elaboramos um levantamento arquitetônico e um laudo estrutural para partir para reformas emergenciais. O laudo indicou três telhados condenados e redes hidráulicas e elétricas em péssimas condições – ainda assim, algumas pessoas estavam morando nos apartamentos, invadidos ou com contratos muito antigos. Iniciamos um longo diálogo, o que tornou possível encontra maneiras de prestar a assistência necessária e, no fim, os moradores decidiram sair voluntariamente.

No meio tempo, começou um trabalho de formiguinha: uma intensa pesquisa sobre a história da região, seus usos e suas dinâmicas. Um café com o vizinho, um bate-papo com os comerciantes que por anos mantiveram seus negócios no bairro e uma aproximação com os pequenos empreendedores que também foram atraídos para a região. Visita com engenheiros, uma passada no arquivo histórico da cidade, conversas com professores de universidades de arquitetura. Ouvidos e olhos bem abertos e muita receptividade para entender que tínhamos dois desafios para colocar em prática: o arquitetônico e o humano.

Muitos nos diziam que o projeto era uma utopia. Por outro lado, a comunidade e outras regiões da cidade nos deram uma resposta muito positiva. Além de nós, muitas pessoas desejavam que aquele espaço voltasse a fazer parte da cidade. A ideia de um centro cultural também foi bem acolhida e sentimos que as pessoas se apropriariam da proposta com entusiasmo. Isso nos deu energia para investir nas reformas iniciais. Ao mesmo tempo, desenvolvi com meus colegas paulistanos, reunidos no escritório Goma Oficina, o projeto arquitetônico completo. Pensando nas demandas contemporâneas, diversidade é a palavra: criar uma permanência contínua para valorizar a vitalidade do conjunto e do entorno. No térreo, uma galeria com ateliês e lojas, uma nova estrutura que funciona como uma marquise para um passeio coberto de galeria, que convida as pessoas a entrarem. O galpão, no fundo, abriga um café, um salão de exposições e uma sala de eventos. O Edifício São Carlos foi adaptado para comportar escritórios; o Edifício Hoffman, projetado para habitação.

A partir de 2011, os telhados foram reformados. As portas foram abertas para a comunidade, convidada para (re)conhecer o espaço e pensar seus novos usos. No fim de 2012, os chamados "predinhos de Lutzenberger" receberam o primeiro evento e aí começou a se desenhar um projeto cultural de fato, um centro de cultura, educação e empreendedorismo criativo, construído com muita coletividade e colaboração. Nossa família tinha saído de Porto Alegre 30 anos antes – e, graças ao Vila Flores, criamos novos vínculos com a capital gaúcha e conhecemos pessoas incríveis que até hoje participam do projeto.

Desde 2013 muitas atividades estão acontecendo no Vila Flores, entre exposições, espetáculos, shows, palestras, cursos e oficinas. Em 2014, 20 iniciativas "residentes" começaram a ocupar espaços individuais de trabalho, uma ocupação espontânea e orgânica. Cada um desenvolve atividades dentro de seu campo de atuação, mas também cria projetos compartilhados que promovem um diálogo entre as áreas do conhecimento. O que sempre prezamos na distribuição dos espaços é que haja diversidade de atividades, assuntos, pessoas. Isso é o que promove uma boa conversa. No fim, experimentamos uma assimilação muito forte da sociedade, um sentimento de participação e pertencimento.

​Sabemos que o Vila Flores é um projeto não convencional. É um núcleo de resistência, originado num imóvel privado que hoje que presta serviços de utilidade pública, com maior acessibilidade à cultura, o desenvolvimento de novas tecnologias sociais e o crescimento do empreendedorismo criativo. Estamos em fase de captação de recursos com leis de incentivo, para consolidar o Vila Flores num espaço de experimentação e transformação, cada vez mais aberto ao público, vivo e diverso. E que isso possa se refletir no dia a dia da cidade.

*João Felipe Chaves Barcellos Wallig, arquiteto e urbanista formado na Escola da Cidade, é sócio fundador do escritório Goma Oficina e um dos responsáveis pelo projeto Vila Flores.