Vinicius Andrade | O centro de SP e a reza brava

12/08/2015
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Fui surpreendido com uma bela reportagem sobre a retomada do centro de São Paulo como espaço da moradia. Trata-se da edição de fevereiro da Revista sãopaulo, encarte dominical do jornal Folha de S. Paulo, cuja capa ostentava o seguinte título: “CENTRO das atenções”. A revista dá notícia de um levantamento realizado pela prefeitura de São Paulo que revela, entre outras novidades, que a região central da nossa cidade volta a despertar interesse e que a taxa de imóveis vagos na Sé, por exemplo, caiu de 39,7% para 11,7% em uma década.

 

A reportagem, assinada por Vanessa Correa e Chico Felitti, apresenta muitos fatores para compor um cenário em que este fenômeno urbano pode ser explicado, como a hipótese de abertura de que “preços mais baixos e facilidade de transporte ajudaram taxa de apartamentos vagos a cair 70%”. Curiosamente, a revista não destaca um fenômeno específico, para o qual ela mesma, revista, contribui significativamente: a força das ideias.

 

O tema está longe de ser uma novidade. Desde meados dos anos 1970, já se falava em degradação da área central, neste primeiro momento associada à diminuição do uso habitacional e o aumento do uso para comércio e serviços. Data deste período [1973-1975] o Projeto Centro, elaborado pela Cogep (Coordenadoria Geral de Planejamento) que visava a “revitalização do uso habitacional” para a área correspondente aos distritos da Sé e República.

 

Por que então requentar esta “notícia velha”? Além do fato de que esta é uma notícia de extrema importância para todos nós que habitamos essa cidade, e que, portanto, deve ser repercutida e até celebrada, recuperar esta discussão é também uma ótima oportunidade para compartilhar uma hipótese que vem ganhando forma, na medida em que converso com meus colegas da área do urbanismo.

 

O argumento que pretendo explorar é de que as políticas públicas tem se mostrado consistentemente ineficazes quando o tema é reverter a evasão de moradias do centro de São Paulo e que o lento e laborioso trabalho das ideias, tratando de mudar a imagem negativa, que se alastrou epidemicamente pelos moradores da cidade, é o verdadeiro motor dessa transformação.

 

Mas de que ideias estamos falando, afinal? De forma simplificada, poderíamos enfocar as ideias que promovem a valorização do centro como espaço público qualificado e, ainda mais importante, a ideia de que o próprio conceito de espaço público pode ser percebido como coisa positiva. São ideias que, por exemplo, abriram os olhos destes jornalistas que hoje se interessam pela região e que são também construtores desta nova consciência.

 

Esta hipótese está apoiada na simples observação da história recente e na compreensão de que, neste caso, se as pessoas não estiverem convencidas de que tal modo de vida pode ser uma boa ideia, não serão políticas ou incentivos fiscais que as farão mudar de atitude.

 

A este respeito gosto de citar uma Pesquisa de Atividade Econômica Paulista (Paep), de 2001, realizada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), que revelava o seguinte: entre os diversos fatores elencados (incluindo itens como preços dos imóveis, incentivos fiscais ou boa oferta de mobilidade) aquele que se destacava como o fiel da balança na escolha do local para a sede das empresas em São Paulo era a proximidade da casa dos sócios!

 

E foi exatamente assim que o vetor terciário da cidade emigrou do centro para a Av. Paulista, depois para os Jardins, Av. Faria Lima e, finalmente, para o eixo Berrini-Chucri Zaidan: acompanhando a migração dos bairros onde se concentram grande parte da elite paulistana e ignorando solenemente um conjunto abundante de políticas urbanas que se esforçavam para reverter a evasão.

 

Certa ocasião, em uma reunião de trabalho corriqueira, um consultor da área do mercado imobiliário, quando indagado sobre a possibilidade de alguns incorporadores passarem a investir no centro, rebateu com a máxima: “nem com reza brava”. Desde então, passados quase dez anos, estive observando, (e participando) de inúmeras tentativas de contrariar esta maldição, mas até muito recentemente não me parecia que isso fosse realmente acontecer.

 

Não é de hoje que urbanistas, no mundo todo, são praticamente unânimes quanto à necessidade de retomarmos os centros de nossas metrópoles como lugar privilegiado para morar. São Paulo não é exceção e conta com um considerável contingente de urbanistas empenhados em viabilizar esta façanha.

 

Entre as principais razões para esta convergência podemos elencar: a oferta de bens e serviços; infraestrutura e mobilidade; o valor simbólico e histórico; a proximidade com postos de trabalho e, no caso de São Paulo, também podemos acrescentar a qualidade espacial. Mais recentemente, difundiu-se a consciência de que as cidades mais compactas, nas quais o centro é densamente povoado, são também mais sustentáveis.

 

Por 20 anos, desde 1980, verificou-se a persistente queda na população absoluta da área central da cidade, uma tendência demográfica que teve seu período mais intenso entre os anos 1980 e 1990. Este período coincide com a consagração de um contexto marcado pela implantação de grandes obras viárias, entre as quais podemos citar o Elevado Costa e Silva (o Minhocão), a Praça Roosevelt e os Viadutos do Parque Dom Pedro II, obras que priorizaram o fluxo de automóveis na escala metropolitana em detrimento da qualidade urbana local.

 

Não pairam dúvidas sobre o impacto negativo que estas obras tiveram sobre o espaço físico do centro, ainda assim acredito que outro fenômeno associado a este tem sido pouco avaliado. A chegada do Metrô e deste conjunto de grandes obras viárias inauguraram uma nova era na área central, marcada por sua forte popularização, fenômeno comumente percebido como processo de degradação.

 

Particularmente o Metrô, um sistema potente e popular, que utiliza a região como nó de conexões, abriu as portas do centro para uma população que antes não fazia parte do cenário e que passa a transitá-lo e frequentá-lo, provocando, quase que imediatamente, um considerável êxodo das elites dominantes na direção do vetor sudoeste.

 

Segundo esta leitura a ideia de degradação do centro é também uma construção teórica e ideológica, que encontra rebatimento na real degradação física de alguns de seus espaços, de tal forma que um fenômeno se alimenta do outro, estabelecendo um curto-circuito vicioso do qual resulta muito difícil escapar.

 

A partir deste arranjo a ideia hegemônica que se difundiu sobre o centro de São Paulo é aquela associada à degradação e ao esvaziamento, como se esta fosse a única história que se pode contar. Como exemplo da confusão que este arranjo provoca, podemos convocar um dos comentários mais comuns que se faz sobre a região: ela precisa, urgentemente, ser revitalizada.

 

Pessoalmente conheço poucos lugares da cidade tão vitais. Basta lembrarmos da região da Rua 23 de Maio, ou os inúmeros Largos, tanto do Centro Velho quanto do Centro Novo, ou a Rua Sta. Efigênia, ou a região do Glicério, e assim por diante. O centro, na verdade, é muito vivo. E muito popular.

 

Esta leitura nos leva de volta à importância da construção das ideias como ferramenta de transformação urbana. Existe um valioso corpo de ideias, fomentado em um sem fim de seminários, trabalhos acadêmicos, fóruns urbanos (realizados tanto no Brasil quanto pelo mundo afora), projetos urbanos, no cinema e na arte em geral e que vem trabalhando no desmanche da visão empobrecida que se construiu sobre o centro.

 

Neste cenário transformador, ilustrado por novas ideias de inclusão, participação e convivência, cabe destacar o papel das recentes manifestações populares de grandes proporções em nossas cidades como fenômeno de retomada do espaço público como espaço positivo, particularmente a região central. Opera-se assim uma radical transformação da percepção que se tem do mesmo. Sob esta óptica, estas grandes manifestações revelam-se, a um só tempo, causa e consequência deste processo de transformação.

 

É importante termos a consciência de que este imaginário positivo é resultado de uma construção teórica e coletiva e que, portanto, a ideia de transformação espontânea não se aplica propriamente ao caso. Tratemos, então, de reconhecer o poder transformador deste corpo de ideias e que este se fortaleceu quando alcançou uma grande convergência, abrangendo diversos setores da sociedade. Esta percepção aponta para um inegável amadurecimento do papel da cidadania, que ganha força no processo de transformação da cidade, precisamente por meio do debate.

 

Evidentemente, não podemos apenas comemorar uma melhoria no cenário. Novas questões surgem automaticamente diante destas mudanças. A fragilidade da administração pública no que toca à sua capacidade de condução destes processos é apenas uma delas. No entanto, a compreensão de que não teremos jamais uma cidade melhor, mais bela e mais justa, se não contribuirmos, permanentemente, para o debate e para a construção de um imaginário positivo e realista capaz de envolver e engajar nossa comunidade urbana já é uma boa lição aprendida.