75% de informalidade nas cidades brasileiras

15/03/2018
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No último dia 25 de janeiro, a cidade de São Paulo completou 464 anos de existência. A data foi celebrada com 25 horas ininterruptas de atrações e festividades, num ritmo típico da história paulistana. Afinal, foram tempos frenéticos desde a instalação da missão jesuítica, em 25 de janeiro de 1554, na colina histórica de Piratininga, até se tornar a região metropolitana em que vivemos hoje, com 21,2 milhões de habitantes distribuídos em 39 municípios.

 

Mas, nos últimos tempos, são outros os números que têm despertado a atenção dos urbanistas, indicando que, talvez, existam mais razões para preocupação do que para comemoração. Diversas pesquisas análogas dão notícia de uma dura realidade: o agravamento da polarização existente entre a cidade formal e a cidade informal. São Paulo, a exemplo de muitas outras grandes cidades contemporâneas, é uma cidade partida.

 

Ao visitar São Paulo,  impressionam o tamanho de suas principais avenidas, os parques, o centro histórico, os grandes edifícios corporativos e as torres residenciais. A partir destes elementos, construímos uma imagem virtuosa da cidade. Esta é conhecida como cidade formal e é o lugar onde se concentram os investimentos públicos e privados; as infraestruturas são mais completas e sofisticadas; as construções mais vistosas e tecnológicas; e é onde a presença do Estado é mais evidente. É, portanto, aquela que tem maior visibilidade e acaba, consequentemente, se tornando a imagem oficial da cidade.

 

Mas São Paulo tem uma outra face, visível em suas enormes periferias, nos loteamentos incompletos ou clandestinos, na autoconstrução, nas favelas e cortiços, e que supera, em muito, a área ocupada pela porção formal da cidade. Esta face, a cidade informal, abriga grande parte das moradias da cidade e ocupa grande parte do território urbano, fazendo com que a cidade formal se pareça com uma ilha de riqueza, rodeada por uma extensa ocupação empobrecida.

 

Existe um enorme contingente de habitantes que não tem acesso à cidade formal e que equaciona sua própria carência por meio da auto-gestão ou autoconstrução, que é a situação em que o próprio morador é responsável pela construção de sua moradia. Esta situação precária é recorrente na ocupação informal: sem direito à propriedade da terra ou sem a regularização do imóvel, os moradores sofrem com a insegurança legal, além dos riscos inerentes à autoconstrução tais como os incêndios, desabamentos, alagamentos etc. Uma pesquisa recente, realizada pelo Datafolha, a serviço do CAU - Conselho de Arquitetura e Urbanismo – informa que 85% das construções realizadas no Brasil são conduzidas sem a participação de um profissional habilitado.

 

São inúmeras as tentativas de estabelecer um contorno preciso para o conceito de cidade informal. Estudos apresentam interpretações distintas dos dados disponíveis. Aspectos fundamentais para a compreensão deste conceito, como a autoconstrução e autogestão, por exemplo, são descritos na literatura especializada de diferentes formas e, por vezes, definem fenômenos contraditórios.

 

A ONU-Habitat, por exemplo, apresentou em 2003 uma definição em que um assentamento informal se caracteriza por apresentar uma ou mais das seguintes condições: superlotação, estado precário da moradia, ausência de algum dos serviços públicos e irregularidade da propriedade. Como bem observou Alejandro Echeverri, urbanista colombiano, estas condições se limitam a descrever o estado físico e legal, deixando de fora a dimensão socioeconômica, parte integrante e fundamental para a caracterização deste fenômeno.

 

Assim,  uma lista relativamente eclética de fontes foi consultada para desenvolver esta análise, cruzando informações de diferentes origens:  depoimentos de Ermínia Maricato, urbanista e notória conhecedora do tema; dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; o Mapa da desigualdade de 2017, elaborado pela Rede Nossa São Paulo; o Atlas de vulnerabilidade social, elaborado pelo IPEA; e dados internacionais do WRI – World Resources Institute.

 

Com a mesma liberdade, esta pesquisa apoia-se na experiência pessoal de seus autores para afirmar, por exemplo, que as casas autoconstruídas assemelham-se entre si, seja pelos atributos dos loteamentos e dimensões dos seus lotes, seja pela sua técnica construtiva, tão característica das paisagens urbanas brasileiras - o bloco cerâmico e a laje pré-fabricada mista. Tais casas são, portanto, facilmente identificáveis em nossas paisagens.

 

Essa busca por um contorno para a ideia de cidade informal levou este artigo a resgatar um conceito utilizado pela urbanista Regina P. Meyer: urbanização incompleta. De certa forma, esse conceito pode ser verificado na abordagem proposta pelo IBGE, Tipologia intraurbana: espaços de diferenciação socioeconômica nas concentrações urbanas do Brasil, realizado com base em dados do Censo Demográfico de 2010, em que foi publicado o número que se destaca no título desse artigo.

 

Entre as características socioeconômicas utilizadas no estudo estão: acesso ao abastecimento de água, sistema de coleta de esgoto e lixo, número médio de moradores por cômodo, rendimento domiciliar, nível de escolaridade, presença de equipamentos domésticos e material de construção do imóvel. Essa descrição parece bastante consistente com a ideia de urbanização incompleta e, portanto, uma plausível descrição para a cidade informal.

 

Como resultado, o estudo oferece um importante retrato do cenário atual: das 94,6 milhões de pessoas que vivem em concentrações urbanas no Brasil, 76% estão posicionadas entre as sete piores condições, numa escala de 11 classificações. Apenas um entre quatro moradores das aglomerações urbanas vive bem.

 

A quase totalidade das grandes cidades do país têm atualmente em torno de 30% de áreas ocupadas por favelas, chegando às vezes a 50%. E essa tendência é crescente: de acordo com a Fundação SEADE, são as periferias as responsáveis pelo aumento nas taxas de crescimento populacional. Os bairros de maior crescimento são justamente aqueles que apresentam as piores condições de vida. 

 

O problema não é a cidade informal, mas as cidades.  É preciso mudar radicalmente o prisma. Se, até recentemente se falava em erradicar favelas, hoje isso é altamente improvável. É hora de reconhecermos que as favelas, e a cidade informal como um todo, não são o problema de nossas cidades: elas são a própria cidade.

 

A cidade informal está presente na cidade formal e vice-e-versa: o comércio informal que movimenta nossa economia urbana está enraizado em nossas ruas formais, assim como os trabalhadores da economia formal, com carteira assinada e tudo, frequentemente moram na cidade informal.

 

Apesar das evidentes dificuldades, a cidade informal também tem seus pontos positivos. Se, por um lado, na cidade formal o espaço público vive uma profunda crise, em que é evidente a predominância dos valores da individualidade e da privacidade, em que se multiplicam os shoppings centers e os condomínios fechados, por outro lado, na cidade informal prevalece um forte espírito de comunidade, o espaço público é o espaço da integração e da solidariedade, pracinhas e ruelas são valorizadas como lugar da socialização e da celebração. Esses são valores preciosos para a qualidade da vida urbana, dos quais a cidade formal carece e precisa, urgentemente, reintroduzir em sua agenda urbana.

 

A desigualdade sócio-territorial do Brasil chegou a uma situação-limite, que pode ser atribuída a dois principais fatores: primeiramente, o agravamento real e concreto da situação e, em segundo lugar, não menos importante, a recente visibilidade que a questão adquiriu, escancarando a ferida nas diversas mídias, demonstrando, inclusive, uma crescente conscientização da população e das instituições com relação ao tema.

 

Evidentemente, a busca por ideias e soluções que proporcionem uma maior integração sócio-espacial deve morar no topo da agenda dos administradores públicos brasileiros. Por outro lado, essa recente conscientização se revela uma oportunidade para que a questão da exclusão não seja encarada como um problema a ser enfrentado exclusivamente por políticas públicas. Todos têm responsabilidade sobre essa realidade e, consequentemente, devem assumir o compromisso com essa causa.

 

Uma cidade partida não é boa para ninguém. As mazelas e as “deseconomias” provocadas por essa condição são muitas e bem conhecidas. Uma cidade mais aberta e mais integrada certamente propiciaria um ambiente urbano mais saudável e mais produtivo. É possível, e necessário, fazer deste movimento de integração um caminho para a prosperidade da cidade como um todo.

 

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Beatriz Vanzolini Moretti é arquiteta e urbanista, professora do curso 'Urbanismo, Cidades e Liderança Consciente' realizado pelo Arq.Futuro e pelo Insper. Desenvolve projetos com o Instituto Urbem desde 2013, e é professora-assistente de urbanismo pela Escola da Cidade.

 

Vinicius Andrade é arquiteto e urbanista, sócio do escritório Andrade Morettin Arquitetos, professor de urbanismo na Escola da Cidade e do curso 'Urbanismo, Cidades e Liderança Consciente' realizado pelo Arq.Futuro e pelo Insper. Eleito conselheiro do CAU-SP para o próximo triênio.