Por Luiz Braga
A chegada da maturidade me levou a algumas reflexões sobre o ofício de fotógrafo e, não por acaso, elas têm a ver com a arquitetura. Sou arquiteto e construí imagens por mais de 40 anos.
É sobre essa construção que quero falar, pois ao longo do tempo me dei conta de que as imagens têm alicerces ancestrais, cravados nos lugares onde fui criança, cresci e me tornei homem.
Essas lembranças exercem papel fundamental na arquitetura interior que trago comigo e que se manifesta nas minhas fotografias e obras, como se ao puxar um fio imaginário eu chegasse à cor amarelada da lâmpada da sala da casa da Rua 14 de Março, número 1599, em Belém, ou à textura lisa das pedras de lioz da calçada da infância.
Nessa época, anos 1960, a geração de energia era a diesel e a corrente oscilava provocando um pulsar dourado nas coisas. Essa lâmpada, cuja fabricação hoje cessou, está presente em inúmeras obras que produzi misturando sua temperatura quente com a luz do anoitecer amazônico.
O sobrado tinha o piso de tábuas corridas de pau amarelo e acapú. No corredor listrado, eu jogava boliche ou montava meu forte apache. Nele, assisti minha irmã dar os primeiros passos. À luz de suas infinitas janelas, criavam-se desenhos de luz e sombra no meio da manhã. Chegava o vento da chuva da tarde, que na Belém da época ainda era pontual, às duas da tarde. O cheiro molhado era seguido de um grito vindo da cozinha: "fechem as janelas que lá vem chuva!" Correria e barulho dos chinelos apressados de minha madrinha. As janelas eram muitas, talvez uma dúzia delas, pintadas com tinta a óleo amarelo ovo, para resistir ao tempo. As paredes azuis, verdes, rosas, dependendo da época.
Foi com a luz desse lugar que fiz minha primeira foto: um retrato de meu pai lendo o jornal depois do almoço, sentado numa daquelas cadeiras do papai, de ferro e courvin vermelho e branco. A suave luz de janela está presente em muitos de meus retratos.
No porão desse sobrado, improvisei meu primeiro laboratório com cobertores escuros, onde usava o kit de revelação do Instituto Universal Brasileiro para fazer contatos em 6x6 das fotografias que tomava pela casa. Ver a primeira imagem surgir na pequena banheira, uma mágica inesquecível de um ritual que me acompanharia por muitos anos.
O porão era o espaço das brincadeiras, dos tanques para guardar as tartarugas que meu pai, médico, ganhava dos pacientes do interior. De dar banho no cachorro, de guardar as bicicletas. O cheiro de creolina, desinfetante muito usado naquele tempo, até hoje é capaz de reconstruir todo esse universo, permeado por festas, cores e sabores. Memórias construídas em camadas de vida e que formam meu olhar para o mundo.
Recentemente, estive com minha família visitando a amiga e curadora Tereza Siza, no Porto. Tivemos o privilégio de passar uns dias na secular casa da família, ver suas maravilhosas fotografias, ouvir suas histórias que se espalham por três andares e diversos continentes. Do ilustre e querido irmão Álvaro está intacto o primeiro mobiliário projetado para a cozinha. Se nossa casa da 14 de Março não tivesse sido demolida para dar lugar a mais um prédio envidraçado de 25 andares, eu talvez ainda pudesse ter o prazer de ouvir as cigarras das seis da tarde ou os sinos da basílica de Nossa Senhora de Nazaré.
Penso que cada um de nós carrega dentro de si uma morada do afeto, impregnada de referências e lembranças através das quais se relaciona com a arquitetura propriamente dita. Tive o privilégio de nascer em uma cidade cosmopolita, Belém, então cheia de refinamento europeu advindo da riqueza da borracha, mas cercada de rios e florestas, com seus hábitos ribeirinhos singelos. Isso me proporcionou uma criação multifacetada onde frascos de extratos franceses e porcelana inglesa coexistiam com paneiros de patos e garrafas de tucupi, que junto com o jambú se transformavam na iguaria tradicional das famílias paraenses no dia do Círio de Nazaré. Meu caminho para a faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Pará era feito pela região ribeirinha, com muitas feiras e trapiches, por onde pulsava a ida e vinda das pessoas do interior e seus barcos com frutas, peixes, farinha e cestas. Uma paisagem quase rural, diferente do resto da Belém colonial portuguesa e seus casarões azulejados.
Nesse percurso as cores eram vibrantes, primárias, vindas da mistura de pó xadrez e cal aplicado nas superfícies das barracas, bares, tabuleiros, casas. Vida cabocla, alegria, contrastes intensos, sem meios tons. Verdadeiras tatuagens sobre os objetos do afeto. A posse pela cor, como descrito por João de Jesus Paes Loureiro, no seu texto As Fontes do Olhar. A arquitetura do casario de madeira, com franco uso de treliças coloridas de madeira e as pinturas geométricas, se incorporaram em minha fotografia assim como as soluções criativas (chamadas de gambiarras) serviram de cenário natural para centenas de fotos. Essa paisagem, chamada de visualidade popular da Amazônia, acabou por me alimentar de uma vida cujo pertencimento se dá pelo afeto.
Nesse território de poucos quilômetros de extensão concentrei grande parte de minha produção num percurso de décadas, como um umbigo de luzes e cores que sempre me levará ao fundo do coração.
* Luiz Braga é fotógrafo e arquiteto. Seu trabalho é reconhecido pela experimentação e pela abordagem original da região amazônica. Suas fotografias estão presentes em acervos como o do Museu de Arte Moderna de São Paulo, da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Centre Culturel Les Chiroux, na Bélgica. Em 2009, representou o Brasil na Bienal de Veneza. Vive em Belém.
Artigo | Luiz Braga: A arquitetura do afeto
Fotógrafo e arquiteto, autor fala sobre lembranças que ficam impregnadas nas construções08/12/2015