Entrevista | Saskia Sassen: 'Quem é dono da cidade?'

Por Carolina Toledo e Isadora Cruxen
21/08/2015
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Em entrevista ao Arq.Futuro, a socióloga holandesa Saskia Sassen chama a atenção para o processo de "desurbanização" das grandes cidades e as lógicas de expulsão que afastam moradores e desarticulam bairros tradicionais.

 

Saskia estará em Porto Alegre (dia 24 de agosto) para o evento Fronteiras do Pensamento e em São Paulo (dia 26) e falará, entre outros temas, de seu estudo mais recente, intitulado "Quem é dono da cidade?". Nessa pesquisa, a socióloga analisa o impacto da crise financeira de 2008 no desenvolvimento dos centros urbanos.

 

A partir de um levantamento dos fluxos financeiros internacionais, ela argumenta que grandes corporações têm migrado do mercado de especulação – que se tornou menos atraente depois da crise –, passando a investir pesadamente na aquisição de propriedades urbanas.

 

Segundo Saskia, volumes de investimentos que ultrapassaram meio bilhão de dólares em 2014 estão sendo direcionados para o mercado imobiliário e armazenados em apartamentos de luxo, hotéis, prédios empresariais e megaempreendimentos que não fazem cidade. Muitos dos quais permanecem desocupados e contribuem para a desativação de zonas urbanas vibrantes.

 

Professora da Universidade Columbia e da London School of Economics, Saskia Sassen faz parte de uma rede internacional de intelectuais – ao lado do economista Richard Sennett, do urbanista Richard Burdett e do presidente da UN Habitat Joan Clos – que está articulando uma “Nova Carta de Atenas”, em referência ao manifesto de Le Corbusier para o planejamento da cidade moderna. A nova carta será apresentada no Habitat III, em Quito, em 2016, e vai propor uma agenda de discussão sobre o futuro das cidades no século XXI. “Eu faço parte de um grupo que quer e deseja que esse Habitat faça história”. A seguir, a entrevista.

 

Em que sentido você acredita que as cidades estão sendo “desurbanizadas”?

Estamos testemunhando um processo de larga escala e historicamente atípico, em que corporações estão comprando grandes pedaços das cidades, incluindo espaços públicos e pequenas propriedades. Esse processo começou em 2008, após a crise financeira, e tem se agravado. Em 2014, mais de meio bilhão de dólares foram destinados à compra de propriedades urbanas nas 100 principais cidades para o investimento imobiliário. E esse número mede apenas aquisições de propriedades com um preço mínimo de 5 milhões de dólares e não inclui o desenvolvimento de terrenos vazios em projetos de larga escala. Isso pode ser sério. Minha pesquisa sugere que, na atual escala de aquisições, estamos vendo uma transformação sistêmica do padrão de propriedade de terra nas cidades. O espaço que antes era pequeno e público agora está virando grande e privado. Essa mudança pode alterar o significado histórico da cidade e tem implicações importantes para a equidade, a democracia e os direitos. A tendência é que propriedades pequenas enraizadas em áreas atravessadas por ruas e praças públicas deem lugar a megaprojetos que destroem a maior parte desse tecido urbano. Isso “desurbaniza” e privatiza o espaço da cidade. Lentamente, pedaço a pedaço, esse processo vai acontecendo, já que leva tempo para que essas construções sejam feitas. Quando finalmente nos dermos conta do que está acontecendo, será tarde demais.

 

Contrapondo a tese de economista Edward Gleiser, autor de Triunfo das Cidades (lançamento da BEĨ Editora em 2016), você argumenta que “densidade não faz cidades”. Por quê?

Dê um passo atrás e se pergunte: o que define uma cidade? Na minha opinião, é uma mistura de complexidade e de incompletude. Parece-me que essa mistura permitiu a aglomeração de pessoas, lógicas e políticas diversas. Além disso, uma grande cidade mista é como uma zona de fronteira, quero dizer, um lugar em que atores de diferentes mundos podem se encontrar, em que não há regras estabelecidas de convivência. É também uma zona onde os desprovidos de poder e os detentores de poder podem se encontrar. Esse mix de complexidade e incompletude permite que se gere uma espécie de sujeito urbano e uma subjetividade urbana. Pode superar o sujeito religioso, o étnico, o racial e, em certos espaços, até diferenças de classe. Há momentos na rotina da cidade em que todos se tornam sujeitos urbanos. A hora do rush é um exemplo – massas correndo para pegar o transporte público. Essa mistura também torna as cidades espaços de inovação, que tanto ricos quanto pobres podem lançar. E é um lugar em que aqueles sem poder podem fazer uma história, uma cultura, uma economia – mesmo que eles não necessariamente se tornem poderosos. Pense, por exemplo, em comunidades de imigrantes e favelas. Mas hoje, ao invés de um espaço de inclusão de pessoas de diferentes experiências, nossas cidades globais estão expulsando as pessoas e a diversidade. Esse processamento de tanta diferença é uma capacidade admirável – mas seria ótimo se servisse a melhores fins. Esse não é bem o "sujeito urbano" que nossas grandes, mescladas cidades produziram historicamente. Esse é, sobretudo, um sujeito "corporativo" global. Vivemos um momento em que o capital global, essa entidade poderosa, precisa de um "chão" e esse chão é o território da cidade.

                                      

No livro Expulsions (2014), você defende a necessidade de novos conceitos para capturar a complexidade dos processos de remoção de pessoas ocorrendo no mundo todo. Como o conceito de "expulsão" nos ajuda a entender transformações urbanas no sul global?

Uma das questões que me guiaram durante o livro foi a de que a linguagem de mais desigualdade, mais pobreza, mais prisões, mais degradação ambiental, e assim por diante, não é suficiente para marcar a proliferação de condições extremas. É por isso defendo que chega um momento em que estamos lidando com expulsões. Não é simplesmente mais de uma coisa ruim, é uma ruptura radical. Vejo o momento de expulsão como o momento em que o familiar se torna extremo. É a versão extrema de condições familiares. Não é uma questão de ser monstruoso, estranho, algo que pertence a uma outra realidade. O momento de expulsão é quando você não é simplesmente pobre, você é desabrigado, tem fome, perdeu sua casa, mora em um abrigo. Ou no que se refere à terra e à água, não é só uma questão de degradação, em que a terra e a água não são próprias para uso; é não ter mais água ou terra, é elas terem acabado.

 

Atualmente no Estado de São Paulo, a preservação ambiental às vezes vai de encontro com a provisão de serviços públicos como água e saneamento para a população de baixa renda que vive em assentamentos informais em áreas de proteção ambiental. Como reconciliar questões ambientais e justiça social em uma agenda de transformação urbana?

Sim, esse é um problema. É também algo que varia de lugar para lugar, então algo que funciona em outros lugares pode não funcionar em São Paulo. Meu ponto de vista é que a proteção ambiental é uma prioridade efetiva, sobretudo, porque muito da degradação vem da mineração, de grandes plantações, do uso de água por parte de empresas como a Nestlé e a Coca-Cola – tudo isso causa muito mais impacto do que as favelas em São Paulo. Na análise que desenvolvo no livro, enfatizo a necessidade de reconhecer e dar visibilidade a formas extremas de destruição ambiental: terra morta e água morta. 

 

Como, então, impedir a desarticulação do tecido urbano e envolver mais pessoas na transformação das cidades?

O urbanismo open source é um antídoto. Significa usar as tecnologias de código aberto em diferentes contextos urbanos. A pergunta então se torna: é possível urbanizar tecnologias de open source? Enquanto inovação tecnológica, a noção de código aberto foi desenvolvida pensando em ferramentas de construção colaborativa, não em cidades. Ainda assim, a abordagem open sourcing ressoa com o que as cidades representam. Para usar uma analogia, o parque não é feito apenas com o "hardware" das árvores e lagoas, mas também com o "software" das práticas e usos que as pessoas fazem desses espaços. A noção de open sourcing neighborhoods (bairros de código-aberto) poderia ser um instrumento-chave para resolver problemas específicos de cada bairro, além de um passo inicial para mobilizar as pessoas em torno de ações coletivas diversas, da agricultura urbana a demandas específicas para que governos locais melhorem os serviços da cidade. E cada bairro tem um tipo de conhecimento diferente acerca da cidade e uma diversidade de atores – a avó, o dono de loja, a criança – que passam tempo no bairro e têm conhecimentos diversos sobre ele. Esses conhecimentos localmente produzidos são diferentes do conhecimento codificado dos governos, dos especialistas, das elites. Poderíamos conectar esses atores diversos dos bairros a redes de acesso aberto (tal como Wikis), que circulem essas informações. 

 

Há experiências que se destacam nesse sentido?

O exemplo mais simples da implementação desse processo é o aplicativo desenvolvido pela prefeitura de Boston para identificar buracos nas ruas da cidade: se você vê ou passa por cima de um buraco, o aplicativo registra a informação, e passa as coordenadas para a prefeitura. Isso economiza muito tempo. Outra inovação é o projeto de cuidados com a saúde desenvolvido por Manmeet Kaur, para auxiliar trabalhadores pobres do Harlem, em Nova York. (O projeto City Health Works conecta cidadãos com treinadores que moram no mesmo bairro, falam espanhol e inglês, entendem as experiências culturais, os desafios e as doenças crônicas que afetam aquela comunidade específica. O objetivo é desenvolver bairros mais saudáveis, diminuir os custos públicos com o sistema de saúde e gerar empregos locais). Órgãos de governo tendem a verticalizar o seu trabalho. Mas nós podemos "hackear" esse conhecimento codificado e trazer as experiências das ruas e dos bairros para dentro desses sistemas de decisão padronizados. Isso abalaria as organizações públicas forçando uma abertura. Os moradores, ao experimentar com essas tecnologias, estão incorporando diversos conhecimento e práticas sobre a vizinhança. Ainda que nem um deles seja um especialista em urbanismo, cada um tem um conhecimento específico sobre o lugar onde vivem. Efetivamente, esse processo pode ser ampliado para a escala da cidade inteira, em um processo de baixo para cima, estimulando trocas e colaborações e criando bairros completamente mobilizados e uma cultura da cidade.