O Fuzzy e o Techie | A parceria

01/06/2018
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Conclusão: a parceria segue os dois caminhos

 

Este livro se centrou no papel que aqueles com formação em ciências humanas podem desempenhar na aplicação das tecnologias emergentes para a criação de inovações revolucionárias. Os techies são seus parceiros iguais e vitais, e também podem e devem dirigir o processo de construção de pontes entre ambos os territórios. Os techies são cruciais para esse movimento, e certamente continuarão a avançar com inovações tecnológicas que ainda nem sequer foram concebidas; eles ainda lideram o desenvolvimento de muitos dos mais novos produtos e serviços mais empolgantes. O empresário sul-africano Elon Musk expandiu as fronteiras do uso de veículos elétricos e da democratização do acesso às viagens espaciais; Larry Page e Sergey Brin disponibilizaram as informações do mundo e hoje se lançam a novos desafios, como o acesso universal à internet; Rodney Brooks, fundador da Rethink Robotics, traçou novas fronteiras sobre o que nossos robôs podem nos ajudar a construir e fabricar.

 

Outros techies estão por trás do avanço do processamento da linguagem natural, que está melhorando o controle de nossa tecnologia com nossa própria voz, tornando o que dizemos, e não o que vemos, aquilo que conta. A Amazon, por exemplo, está oferecendo sua tecnologia de comando de voz, que alimenta a voz de Alexa no Amazon Echo, para qualquer inovador que queira usá-la através do seu “Kit de Habilidades Alexa”. O kit de ferramentas de software está disponível gratuitamente e, para estimular ainda mais sua adoção, a empresa criou um fundo de investimento de 100 milhões de dólares para apoiar empreendedores no desenvolvimento de ideias. Empresas como a PullString, fundada pelos responsáveis pela Pixar e batizada a partir do personagem pull-string de Toy Story, Woody, estão complementado essa capacidade para criar facilmente bots de bate-papo que podem responder a consultas em Slack ou Facebook Messenger e conduzir conversas básicas. Mesmo o deep learning do Google, como o usado pelo AlphaGo, disponibilizado por meio de sua biblioteca de aprendizagem de máquina TensorFlow, está sendo usado de maneiras incríveis. Makoto Koike, um designer automotivo no Japão, por exemplo, usou o TensorFlow para facilitar a vida de seus pais: ao montar o hardware Arduino, uma placa de computador com acesso à internet do Google Raspberry Pi que custa cerca de 35 dólares, e câmeras produzidas em série, ele construiu uma máquina que ajudou seu pai, um agricultor, a classificar e separar pepinos de qualidade, com 70% de precisão. Koike primeiro fotografou manualmente e classificou milhares de pepinos e, em seguida, usou essas imagens como dados de treinamento para ensinar ao TensorFlow quais características específicas em pepinos representavam qualidade e o que tentar identificar em futuras fotografias. Os techies podem muitas vezes ser caracterizados de forma estereotipada como geeks com pouco interesse ou aptidão em preocupações fuzzy, mas isso é tão falso quanto os argumentos que menosprezam o valor das humanidades em nosso mundo tecnológico. O fato é que os techies têm conduzido muitas parcerias que superam a divisão fuzzy-techie, e eles podem ser construtores de pontes altamente eficazes.

 

Veja-se o caso de Doug Ricket, cofundador e CEO da PayJoy. Ele é um ex-engenheiro de software do Google que se associou a um fuzzy chamado Mark Heynen, diplomado em história pela Amherst College, para fundar sua empresa. Eles se conheceram enquanto trabalhavam na equipe do Google Maps, na qual mapeavam a África. Depois de trabalhar no Google, Ricket aumentou sua experiência em tecnologia, tanto atrás de uma tela de computador quanto viajando para aldeias na Gâmbia, na África Ocidental, trabalhando para uma empresa social chamada d.light, que está tentando trazer dispositivos de energia solar para comunidades pobres.

 

Apesar de ainda ser um diretor de engenharia instalado em Hong Kong, Ricket transformou-se, de fato, em um pesquisador antropológico, passando meses em aldeias africanas com potenciais clientes, que ele percebeu não terem acesso a crédito. Sem crédito, o alto custo inicial dos painéis solares revelou-se proibitivo. Ele observou também que muitas dessas mesmas pessoas compravam planos de telefone celular pré-pagos dos quiosques locais. Por que elas não podiam comprar painéis solares da mesma forma, ele se perguntou? Ricket criou uma solução de software para a d.light que permitiu aos clientes comprar seus novos painéis solares ao longo do tempo, gastando apenas alguns dólares por vez.

 

Voltando aos Estados Unidos, Ricket decidiu aplicar o mesmo modelo básico para ajudar os aproximadamente 45 milhões de americanos sem crédito a ter acesso à melhor ferramenta de hoje: um smartphone. Junto com Heynen, chefe de negócios, Ricket lançou a PayJoy em 2015, permitindo aos consumidores comprar telefones ao longo do tempo com taxas de juros muito mais baixas que as alternativas. Após apenas um ano de negócios, a PayJoy havia arrecadado mais de 18 milhões de dólares de capitalistas de risco; o objetivo final da empresa é ultrapassar o mercado americano e capacitar qualquer pessoa no planeta a comprar um smartphone, ou, na verdade, qualquer tipo de novo dispositivo eletrônico.

 

A questão ao enfatizar o papel dos fuzzies não é dizer que eles têm exclusividade sobre as novas oportunidades; mas sim que o fuzzy combinado ao techie é a fórmula para as inovações mais transformadoras e mais bem-sucedidas – as que resolverão mais eficazmente os muitos problemas difíceis a serem enfrentados e que melhorarão nossas vidas. Assim como techies como Doug Ricket podem beneficiar um grande negócio em seus esforços para impulsionar a inovação, aprendendo sobre perspectivas e métodos de pesquisa fuzzy, a capacidade dos fuzzies para se associar com techies será amplamente aprimorada se desenvolverem sua própria alfabetização tecnológica. À medida que avançamos para um futuro tecnológico cada vez mais importante, o objetivo deve ser a ponte entre o fuzzy e o techie em nossos sistemas educacionais, desde as primeiras experiências de aprendizado das crianças até a faculdade e a pós-graduação, e fazê-los refletir esse dualismo necessário na sociedade.

 

Duas culturas conjugadas

 

Em uma famosa palestra na Universidade de Cambridge em 1959, intitulada “As duas culturas”, o britânico Charles Percy (C.P.) Snow,  físico por formação e também romancista, lamentou a crescente divisão entre as ciências e as humanidades, falando sobre a “incompreensão mútua [e a] hostilidade e antipatia” que emergiram. À medida que o século XX avançou e a revolução do computador se desdobrou, a tecnologia da informação juntou-se às ciências duras no seu lado dessa lacuna. É hora de construir mais pontes sobre essa divisão. C.P. Snow também disse em sua conferência que “o ponto de encontro de dois objetos, duas disciplinas, duas culturas – de duas galáxias, tão distantes estão – deveria criar oportunidades criativas”.

 

Esse é precisamente o caso da fusão entre o fuzzy e o techie. Os avanços criativos a serem conseguidos por uma maior valorização dos dois campos e por sua aproximação exigem que inovemos na educação com o mesmo tipo de vigor que tantos empresários levam à inovação em produtos e serviços. Esta é a melhor maneira de assegurar não só que o potencial das novas tecnologias seja realizado, mas também, e tão importante, que as pessoas estejam preparadas para desempenhar os trabalhos do futuro.

 

Tal como acontece com o novo campo de trabalho que está sendo criado para ajudar a tornar os carros autoguiados seguros e com os 2.500 novos empregos de estilistas de moda que a Stitch Fix criou, muitos novos tipos de ocupação e de trabalhos específicos provavelmente surgirão. Assim como John Maynard Keynes não conseguiu prever os muitos novos empregos que emergiriam na economia pós-Grande Depressão, não é possível prever com precisão quais novos empregos podem vir a se desenvolver. Alguns analistas preveem que o número de novos tipos de empregos será substancial. Na verdade, o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos previu em um relatório que até 65% das crianças hoje na escola trabalharão em empregos que ainda não foram criados. Considerando que alguém nascido hoje ainda possa estar trabalhando na década de 2080, a expectativa de que consigamos prever alguma de suas necessidades revela mais nossa arrogância do que autoconfiança ou criatividade.

 

Embora não possamos saber o que serão, podemos conjecturar com segurança que muitos, senão a maioria, precisarão da alfabetização tecnológica. Os alunos motivados podem dominar suficientemente a tecnologia com uma grande quantidade de recursos agora disponíveis, como Katelyn Gleason fez antes de lançar o seu negócio de tecnologia de saúde inovador Eligible, ou como Katrina Lake ao colaborar com o cientista de dados Eric Colson e desenvolver a Stitch Fix. Mas, se o aprendizado da natureza das ferramentas tecnológicas e dos princípios subjacentes de sua operação for parte padrão de uma educação humanista, incluído no programa de como aprendemos e questionamos, talvez isso realmente habilite os fuzzies a colaborar com os techies.

 

Para observar os benefícios de superar a divisão em programas educacionais, não é necessário olhar muito além dos sistemas simbólicos de Stanford, lançados por um grupo de professores que incluía Tom Wasow, decano de estudantes de graduação na Universidade Stanford de 1987 a 1991. “Passei muito tempo pensando sobre o que a graduação deveria ser”, conta ele. O próprio Wasow combinou conhecimentos techie e fuzzy em sua educação, obtendo uma licenciatura em matemática do Reed College e depois um doutorado em linguística do MIT.

 

Trabalhando na interface de linguagem e computação, Wasow foi um dos pioneiros que contribuíram com ideias que tornaram possível o processamento de linguagem natural. Ele podia entrever os enormes benefícios de combinar habilidades techie e fuzzy, e o programa de sistemas simbólicos reuniu cursos de computação com filosofia, lógica, linguística e psicologia. Era uma grade de estudos que não queria jogar pelas regras tradicionais do CTEM versus humanidades, como tampouco seu elenco prolífico de pós-graduados empreendedores, que incluem Reid Hoffman, fundador do LinkedIn; Mike Krieger, cofundador do Instagram; Scott Forestall, criador de softwares do iPhone e iPad; e Marissa Mayer, CEO do Google e do Yahoo. Vice-presidente de gerenciamento de produtos para o Android do Google, que também ajudou a lançar o navegador do Chrome, e CPO do Facebook, Chris Cox obteve um diploma em sistemas simbólicos, além de um mestrado em psicologia. Até mesmo Mark Zuckerberg admite que o programa produz “algumas das pessoas mais talentosas do mundo”. Em suma, Wasow é uma figura fuzzy-techie tranquila e perspicaz no coração de nosso mundo tecnológico.

Outros campos de estudo de construção de pontes já foram criados, é claro. A psicologia, a linguística e a neurociência se unem para criar a ciência cognitiva. A sociologia e a engenharia civil foram combinadas na política urbana, a computação e o design na visualização de dados, e a psicologia e a computação na pesquisa de “usabilidade”. Mais grades de estudo explicitamente fuzzy-techie deverão ser fomentadas, como combinar filosofia e engenharia em “ética do design”, antropologia e ciência de dados em “alfabetização de dados”, sociologia e estatística em “análise humana”, literatura e ciência da computação em “ciência narrativa”, e lei e ciência de dados em “regulação preditiva”. O impulso para fazê-lo está sendo construído. Uma instituição acadêmica que responde à chamada é a Rhode Island School of Design (RISD), onde os fundadores do Airbnb estudaram e Esther Wojcicki proferiu, em 2016, um discurso inaugural.

 

A RISD defende o que chama de educação CTEAM, a integração de domínio técnica (CTEM) com arte e design (A), e isso está acontecendo. O sistema de escolas públicas de Andover, Massachusetts, fez da educação CTEAM um objetivo primário. Em DeSoto, no Texas, a DeSoto West Middle School oferece uma iCTEAM3D Magnet Academy, onde os alunos aprendem sobre planejamento urbano, mas, adicionalmente, usam o Minecraft para projetar a cidade e, em seguida, uma impressora MakerBot Replicator 2 3-D para tornar sua cidade real ao imprimir edifícios e estradas. Os alunos usam Foldit, um jogo em que os participantes dobram proteínas de novas maneiras, novas combinações que poderiam potencializar a cura de doenças, e aprendem química. Em 2013, o então presidente do RISD, John Maeda, ajudou a lançar um encontro bipartidário de CTEAM, focado em tornar esta uma prioridade nacional.

 

Não devemos mais discutir sobre uma falsa dicotomia entre formação CTEM e educação humanista. À medida que coletamos mais dados, exige-se de nós uma grande consideração quanto ao que devemos fazer com eles. À medida que desenvolvemos dispositivos, devemos questionar seu design. À medida que construímos algoritmos, devemos perguntar quais são os pressupostos em que se baseiam e considerar as proteções contra os vieses. À medida que formamos mais cientistas de dados, exigimos mais alfabetização de dados. Fuzzies e techies não devem ser considerados opostos; eles são mutuamente vitais. Como as novas ferramentas permitem um maior acesso ao poder da tecnologia, os avanços em nossas máquinas exigirão um maior envolvimento de nossa humanidade.

 

“Primeiro o trabalho muscular, depois o trabalho de rotina, e então, talvez, o verdadeiro trabalho cerebral”, o escritor Kurt Vonnegut escreveu sobre automação de máquinas em seu livro de 1952, Revolução no futuro.13 Estamos fascinados pelas mudanças tecnológicas há décadas, e, na verdade, os medos de hoje não devem ser cegamente disfarçados com otimismo. Mas se olharmos para as habilidades atemporais que nos manterão relevantes em um mundo dinâmico que não podemos prever, perceberemos que uma maneira de desenvolver essas habilidades muito reais dentro de nossas comunidades é alimentar, em vez de evitar, a inquirição das humanidades sobre quem somos, o que queremos, e por que nós importamos. É ao emparelhar fuzzies com techies, techies com fuzzies, que gerenciaremos melhor as aceleradas mudanças que o nosso mundo enfrenta. Nossa educação, nossos produtos e nossas instituições devem ser em parte fuzzy e em parte techie, a fim de aproveitarmos as incontáveis oportunidades ​​do nosso futuro e de seu rápido desenvolvimento guiado pela tecnologia.

 

*Texto publicado originalmente como capítulo de conclusão do livro O Fuzzy e o Techie – Por que as ciências humanas vão dominar o mundo digital, editado no Brasil pela BEI Editora