São Paulo, cidade do século 20

por Milton Braga
22/01/2018
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Muitas cidades têm sua feição definida pela construção ocorrida em um certo momento da sua história. Paris, por exemplo, é uma cidade bastante associada ao século 19, pela presença marcante das obras e edifícios resultantes das grandes reformas de Haussmann. É difícil imaginar que esse feitio seja suplantado por outro num futuro próximo; assim como é difícil imaginar San Gimignano marcada por algo que não as suas famosas casas e torres medievais.

 

Apesar de fundada em 1554 e de ser uma das primeiras cidades da América colonial, São Paulo deverá se caracterizar, em boa medida, como uma cidade do século 20.

 

Se lembrarmos que até muito recentemente éramos uma pequena vila (em 1870, não passávamos de 30 mil habitantes), é natural que as edificações que abrigaram o espantoso crescimento econômico e social que transformou a cidade na maior metrópole brasileira marquem a nossa paisagem urbana e nossa identidade coletiva.

 

Embora a esmagadora maioria das nossas construções careçam ainda de melhor qualidade para serem perenizadas, o centro histórico paulistano reúne um conjunto exemplar de edifícios que são representativos dessa época. Preservá-los reveste-se, portanto, de grande importância como representação material do que fomos, somos e projetamos ser no futuro como coletividade.

 

A presente edição[1], realizada com apoio do CAU, dá um passo importante nesse sentido ao inventariar alguns dos seus melhores exemplos, atualizando o debate sobre a renovação e reciclagem desse conjunto com vistas à sua preservação histórica. Para isso será fundamental que as forças de governo, de mercado e sociais construam uma base de entendimento e de ação comum que permitam três pontos principais. O primeiro é aprimorar as leis edilícias específicas para flexibilizar a renovação construtiva desse parque imobiliário em termos de padrões contemporâneos. O segundo ponto é criar instrumentos jurídicos que facilitem o desembaraço de imóveis com entraves sucessórios, fundiários e fiscais; aplicar os instrumentos já existentes para incentivo da reciclagem, como a PEUC - Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios. Por fim, o terceiro item fundamental é estimular o uso residencial, por exemplo criando programas de locação popular subsidiada.

 

Mas certamente os maiores desafios da renovação e reciclagem do centro histórico de São Paulo não estão no seu privilegiado parque imobiliário, e sim nas suas atuais condições urbanas. Embora cheio de empregos e muito bem servido pelas grandes redes de infraestrutura e equipamentos - metrô, museus, universidades, hospitais etc. –, existem evidentes limitações em sua habitabilidade: há uma grande macro acessibilidade e uma micro acessibilidade reduzida, com a presença das extensas áreas pedestrianizadas; e há pouca oferta de equipamentos públicos e privados de âmbito local, como creches, escolas de ensino básico, postos de saúde, comércio de bens de consumo diário e espaços públicos para a vida de vizinhança.

 

Poucas cidades do mundo têm seus centros históricos tratados de modo tão excepcional como o centro de São Paulo, o qual ganhará em valor urbano e imobiliário se apresentar, em maior medida, as qualidades urbanas habituais, junto das suas qualidades próprias de lugar mais emblemático da cidade. Para renovar o centro de São Paulo é preciso dotá-lo das condições de vida de bairro, normalizando seu tecido urbano.

 

E, sobretudo, permitindo que seus habitantes – moradores e trabalhadores domiciliados nessas ruas – tenham acesso viário aos seus endereços, com a abertura dos calçadões ao uso compartilhado de pedestres e veículos. Em qualquer lugar da cidade contemporânea deverão ser desenvolvidas medidas que desestimulem o transporte individual privado – o carro – e estimulem o transporte coletivo público, complementado pela mobilidade ativa, mas em todos esses lugares deverá ser garantido, no mínimo, o transporte individual motorizado público (táxis e outras formas de compartilhamento de veículos), para viabilizar a circulação capilar de cargas e passageiros com necessidades especiais.

 

[1] Artigo de Milton Braga para o livro "São Paulo e o Centro", elaborado por URBEM e editora Monolito, com parceria de fomento do CAU-SP, que será lançado nos dias 24 e 25 de janeiro nos quatro debates e três passeios guiados de que o Arq.Futuro participa como co-organizador.