Sérgio Lazzarini | Impulsionando a inovação urbana

Com boas regras do jogo e bons jogadores, os recursos se alinham e se multiplicam, possibilitando cidades mais dinâmicas
15/09/2015
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Novos investimentos se tornam necessários nas cidades para aprimorar meios de transporte, reerguer áreas ociosas e melhorar a qualidade de vida em locais de elevado adensamento. Mas como impulsionar esses investimentos num contexto em que a população exige cada vez mais qualidade a um baixo custo, ao mesmo tempo em que governos se encontram cada vez mais restritos na sua capacidade de financiamento e execução?

Tentando responder essa pergunta, tive a oportunidade de organizar o livro Financiamento da inovação urbana: novos modelos (BEĨ Editora, 2013). O livro dá continuidade a um debate feito no Arq.Futuro de 2013, com a presença de líderes públicos e empresários. Neste artigo, com base no meu próprio capítulo introdutório, apresento elementos centrais discutidos no livro.   

O impulso à inovação urbana requer a análise de três pontos principais. Primeiro, como aprimorar o ambiente regulatório afetando projetos urbanos? Segundo, quais organizações, públicas ou privadas, poderiam ser envolvidas na sua execução? Terceiro, e não menos importante, como financiar projetos de elevado impacto para a população?

Considere o papel do ambiente regulatório. No âmbito de espaço urbano, importantes inovações nas regras do jogo possibilitaram avanços. Por exemplo, a chamada alienação fiduciária permite contrair empréstimo para aquisição de um imóvel dando o próprio imóvel como garantia até a total quitação da dívida. A realidade, entretanto, é que ainda temos uma confusa rede de regulamentos e aprovações perpassando órgãos distintos da burocracia pública. A cada nova questão que surge, cria-se uma nova regra, sobrecarregando a capacidade do Estado de monitorar e aprovar projetos.   

Como criar então os incentivos corretos? Como enfatizado por Carlos Ari Sundfeld, uns dos colaboradores do livro, é preciso buscar uma extensa simplificação de regras e a criação de agências independentes compostas por técnicos conhecedores das mais diversas arestas da regulação urbana. Regras mais simples inibiriam o círculo virtuoso do baixo investimento, não apenas por reduzir o custo de lançar novos projetos, mas também por limitar o ganho ilícito de reguladores que só fazem criar dificuldades para vender facilidades. 

Por sua vez, a criação de agências independentes lidando com temas transversais da vida urbana – meio-ambiente, desenho urbanístico, tráfego, dentre outros – seria fundamental para azeitar as várias etapas de aprovação dos projetos e gerar mais estabilidade nas regras de uso do espaço urbano. Esse ponto é particularmente importante para garantir que o planejamento e a gestão da cidade sejam mais guiados por objetivos de longo prazo ao invés do ciclo político. A cada novo governo que surge, há sempre a tendência de querer se distanciar do que foi feito pelo governo anterior, gerando frequente mudança de regras e planejamento.

Nesse contexto, as organizações públicas e privadas têm papel crucial. Embora serviços urbanos sejam tradicionalmente vistos como de responsabilidade integral do Estado, cada vez mais organizações privadas passam a atuar como idealizadoras e gestoras de diversos projetos de interesse público. Empresas podem se tornar concessionárias de áreas ou vias públicas, pagando em contrapartida algum tipo de taxa pelo uso do recurso público. Nas chamadas parcerias público-privadas (PPPs), as empresas passam a investir em infraestrutura urbana, em contratos de longo prazo, e podem até receber dos governos pagamentos (contraprestações) pelo serviço.

Infelizmente, muitos ainda veem esse movimento com ceticismo.  É fato que muitas licitações e contratos públicos acabam recaindo em empresas que financiaram campanhas eleitorais ou grandes grupos de maior penetração nas redes políticas. Porém, o capital privado se torna uma necessidade diante da crescente escassez de recursos públicos. Vale notar que não se trata, somente, de recursos financeiros. O setor privado pode também contribuir com importantes competências técnicas, na fase de desenho dos projetos, e competências de gerenciamento, na fase de execução. 

Há, aqui, um gancho evidente com a discussão anterior sobre as regras do jogo. Inovações institucionais podem alterar fundamentalmente a forma como o público e o privado interagem. Regras mais simples e com agências independentes inviabilizam transações opacas. Inovações podem também gear um menor risco percebido pelos atores privados. A lei das PPPs de 2004 não apenas criou um marco para possibilitar investimentos conjuntos envolvendo governo e empresa, como também possibilitou maior garantia de cumprimento dos contratos públicos. 

O que nos leva ao terceiro elemento fundamental nesse debate: como multiplicar as fontes de financiamento para que organizações públicas e privadas executem projetos de melhoria urbana? No nosso livro, o economista José Roberto Afonso aponta um curioso paradoxo. Muito da inovação urbana ocorre em municípios. E eles aumentaram sua participação na arrecadação tributária da federação. À exceção de casos como o município de São Paulo, ao longo dos anos as prefeituras tiveram mais, e não menos recursos para investimento. 

Mas, se esse é o caso, como é possível termos um cenário onde a população reclama de uma falta generalizada de atenção para obras de interesse público? Uma explicação é que os governos têm enfrentado entraves diversos para canalizar eficientemente esses recursos para bons projetos. Mas também é importante notar que as cidades têm demandas diferentes; algumas, especialmente as mais adensadas, demandam muito mais ações de melhoria e são mais restritas em capital para suportar os investimentos necessários. Uma saída, discutida por José Roberto Afonso, seria fazer com que as cidades mais restritas em financiamento sejam mais proativas na geração de novas receitas. Tarifas sobre combustíveis, por exemplo, poderiam desencorajar o uso excessivo de veículos, que gera efeitos deletérios para o tráfego e o meio-ambiente, e ajudar a financiar projetos modernos de transporte público. 

Porém, num país com uma já elevada carga tributária, falar em mais impostos torna-se politicamente inviável. A população clama por ações que envolvam um melhor uso de recursos já existentes ou a busca de fontes alternativas de financiamento. Voltamos, novamente, à necessidade quase inexorável de se atrair mais capital privado para obras de interesse público. Tradicionalmente, uma empresa participando de uma concessão ou PPP se financia usando o seu próprio balanço – seja por meio do seu caixa ou das garantias trazidas pelos seus ativos. Qualquer banco, público ou privado, emprestando para essa empresa irá observar se ela tem capacidade para honrar a dívida.      

Para facilitar a captação de recursos além dos limites impostos pelo balanço das empresas, o modelo chamado de project finance estabelece um canal de financiamento para uma firma criada especificamente para executar o projeto. Há ainda, contudo, muita resistência para adotar modelos de project finance menos dependentes do balanço e das garantias das empresas participantes. O curioso é que muito do risco desses projetos vem dos próprios governos. Por exemplo, há riscos consideráveis ligados a atrasos e impedimentos colocados pela complexa regulação.  Há riscos de troca de governo que podem tentar renegociar contratos e atrasar o fluxo de pagamentos de prestadores de serviço. Reduzir esses custos e riscos significa, ao final, melhorar as garantias geradas pelo próprio projeto, logo facilitando a atração de capital externo.   

Há, além disso, mecanismos inovadores ainda pouco utilizados no Brasil. As chamadas social impact bonds, criadas no Reino Unido em 2009, envolvem um mecanismo em que os investidores são remunerados pelo governo com base no impacto social efetivamente medido. Havendo resultado social positivo, os investidores recebem mais.

Inúmeras aplicações nessa linha poderiam ser adotadas no contexto das cidades. No município de São Paulo, há uma PPP em curso na área de iluminação que poderia, a princípio, usar fundos públicos e o próprio ganho futuro que o investimento traria ao município em termos de economia de energia e manutenção. Uma extensão dessa ideia, na linha das social bonds, seria repartir esse ganho com atores privados que ajudassem a apoiar os investimentos necessários, se e somente se o projeto cumprir as metas de economia estabelecidas. 

Com boas regras do jogo e bons jogadores, os recursos se alinham e se multiplicam. Tudo isso em prol de uma interação harmônica entre o público e o privado, com vistas a entregar cidades mais ordenadas, dinâmicas e responsivas às demandas da população.